FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE
CURSO LIVRE
FILOSOFIA DA RELIGIÃO
CONCEITO GERAL DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO
Introdução
Depois de conceituarmos
filosofia, fazermos uma amostragem geral da religião e suas nuanças,
apresentamos de forma topical, embora não cronológica, uma abordagem sinóptica
da filosofia da religião, bem como as diferentes escolas históricas, teológicas
e filosóficas que nos dão uma visão panorâmica desta disciplina.
Termo e definição de
Filosofia
O homem sempre se questionou
sobre temas como a origem e o fim do universo, as causas, a natureza e a
relação entre as coisas e entre os fatos. Essa busca de um conhecimento que
transcende a realidade imediata constitui a essência do pensamento filosófico,
que ao longo da história percorreu os mais variados caminhos, seguiu interesses
diversos, elaborou muitos métodos de reflexão e chegou a várias conclusões, em
diferentes sistemas filosóficos.
O termo filosofia deriva do
grego phílos (“amigo”, “amante”) e sophía (“conhecimento”, “saber”) e tem
praticamente tantas definições quantas são as correntes filosóficas.
Aristóteles a definiu como a totalidade do saber possível que não tenha de
abranger todos os objetos tomados em particular; os estóicos, como uma norma
para a ação; Descartes, como o saber que averigua os princípios de todas as
ciências; Locke, como uma reflexão crítica sobre a experiência; os
positivistas, como um compêndio geral dos resultados da ciência, o que tornaria
o filósofo um especialista em idéias gerais. Já se propuseram outras definições
mais irreverentes e menos taxativas. Por exemplo, a do britânico Samuel
Alexander, para quem a filosofia se ocupa “daqueles temas que a ninguém, a não
ser a um filósofo, ocorreria estudar”.
Pode-se definir filosofia,
sem trair seu sentido etimológico, como uma busca da sabedoria, conceito que
aponta para um saber mais profundo e abrangente do homem e da natureza, que
transcende os conhecimentos concretos e orienta o comportamento diante da vida.
A filosofia pretende ser também uma busca e uma justificação racional dos
princípios primeiros e universais das
coisas, das ciências e dos valores, e uma reflexão sobre a origem e a validade
das idéias e das concepções que o homem elabora sobre ele mesmo e sobre o que o
cerca.
CLASSIFICAÇÃO, CARACTERÍSTICA E SIGNIFICAÇÃO
DE RELIGIÃO
O medo do desconhecido e a
necessidade de dar sentido ao mundo que o cerca levaram o homem a fundar
diversos sistemas de crenças, cerimônias e cultos -- muitas vezes centrados na
figura de um ente supremo -- que o ajudam a compreender o significado último de
sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos que as sociedades
primitivas teceram em torno de uma existência sobrenatural, inatingível pela
razão, eqüivaleram à crença num ser superior e ao desejo de comunhão com ele,
nas primeiras formas de religião.
Religião (do latim religio,
cognato de religare, “ligar”, “apertar”, “atar”, com referência a laços que
unam o homem à divindade) é como o conjunto de relações teóricas e práticas
estabelecidas entre os homens e uma potência superior, à qual se rende culto,
individual ou coletivo, por seu caráter divino e sagrado. Assim, religião
constitui um corpo organizado de crenças que ultrapassam a realidade da ordem
natural e que tem por objeto o sagrado ou sobrenatural, sobre o qual elabora
sentimentos, pensamentos e ações.
Essa definição abrange tanto
as religiões dos povos ditos primitivos quanto as formas mais complexas de
organização dos vários sistemas religiosos, embora variem muito os conceitos
sobre o conteúdo e a natureza da experiência religiosa. Apesar dessa variedade
e da universalidade do fenômeno no tempo e no espaço, as religiões têm como
característica comum o reconhecimento do sagrado (definição do filósofo e
teólogo alemão Rudolf Otto) e a dependência do homem de poderes supramundanos
(definição do teólogo alemão Friedrich Schleiermacher). A observância e a
experiência religiosas têm por objetivo prestar tributos e estabelecer formas
de submissão a esses poderes, nos quais está implícita a idéia da existência de
ser ou seres superiores que criaram e controlam o cosmos e a vida humana.
Aquelas características, que
de certa forma não distinguem uma religião de outra, levaram ao debate sobre
religião natural e religião revelada, o que recebeu significação especial nas
teologias judaica e cristã. O americano Mircea Éliade, historiador das
religiões, denominou “hierofania” a essa manifestação do sagrado, ou seja, algo
sagrado que é mostrado ao homem. Seja a manifestação do sagrado uma pedra ou
uma árvore, seja a doutrina da encarnação de Deus em Jesus Cristo, trata-se
sempre de uma hierofania, de um ato misterioso que revela algo completamente
diferente da realidade do mundo natural, profano.
Por mais que a mentalidade
ocidental moderna possa repudiar certas expressões rudimentares ou exóticas das
religiões primitivas, na realidade a pedra e a árvore não são adoradas enquanto
tais, como expressões de algo sagrado, que paradoxalmente transforma o objeto
numa outra realidade. O sagrado e o profano configuram duas modalidades de
estar no mundo e duas atitudes existenciais do homem ao longo de sua história.
Contudo, as reações do homem frente ao sagrado, em diferentes contextos
históricos, não são uniformes e expressam um fenômeno cultural e social complexo,
apesar da base comum.
Embora não seja fácil
elaborar uma classificação sistemática das religiões, pode-se agrupá-las em
duas categorias amplas: religiões primitivas e religiões superiores. Nessa
divisão, o qualificativo superior refere-se ao desenvolvimento cultural e não
ao nível de religiosidade.
1.1. Religiões primitivas
A importância do culto aos
antepassados levou filósofos e historiadores -- como Evêmero, no século IV a.C.
-- a considerá-lo a origem da religião. As sepulturas paleolíticas corroboram
essa opinião, pois comprovam já haver, naquele período, a crença numa vida
depois da morte e no poder ou influência dos antepassados sobre a vida
cotidiana do clã familiar. Os integrantes do clã obrigavam-se a praticar ritos
em homenagem a seus defuntos pelo temor a represálias ou pelo desejo de obter
benefícios ou, ainda, por considerá-los divinizados.
No século XIX, os estudos
realizados pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor deram origem ao
conceito de animismo, aplicado desde então a todas as religiões primitivas.
Tylor sustentou que o homem primitivo, a partir da experiência do sonho e do
fenômeno da respiração, concebeu a existência de uma alma ou princípio vital
imaterial que habitava todos os seres dotados de movimento e vida. O temor diante
dos fenômenos naturais ou a necessidade de obter seus benefícios impeliu-o a
render-lhes veneração e culto.
O fetichismo e o totemismo
podem ser considerados variantes do animismo. O fetichismo refere-se à
denominação que os portugueses deram à religião dos negros da África ocidental
e que se ampliou até confundir-se com o animismo. Consiste na veneração a
objetos aos quais se atribuem poderes sobrenaturais ou que são possuídos por um
espírito. Mais que uma religião, o totemismo seria um sistema de crenças e
práticas culturais que estabelece relação especial entre um indivíduo ou grupo
de indivíduos e um animal -- às vezes também um vegetal, um fenômeno natural ou
algum objeto material -- ao qual se rende algum tipo de culto e respeito e em
relação ao qual se estabelecem determinadas proibições (uso como alimento,
contato etc.).
1.2. Religiões superiores
À medida que o homem passou
a organizar sua existência numa base racional, a multiplicidade de poderes
divinos e sobre-humanos do primitivo animismo não conseguiu mais satisfazer a
necessidade de estabelecer uma relação coerente com as múltiplas forças
espirituais que povoavam o universo. Surgiram assim as religiões politeístas,
panteístas, deístas e monoteístas, expressões das condições sociais e culturais
de cada época e das características dos povos em que surgiram.
1.2.1. O politeísmo
As religiões politeístas
afirmam a existência de vários deuses, aos quais rendem culto. Existem duas
teorias contraditórias sobre a origem do politeísmo: para alguns, é a forma
primitiva da religião, que mais tarde teria evoluído até o monoteísmo; para
outros, ao contrário, é uma degeneração do monoteísmo primitivo. O politeísmo
reflete a experiência humana de um universo no qual se manifestam diversas
formas de poder sobre-humano; no entanto, nas religiões politeístas ocorre com
freqüência uma hierarquia, com um deus supremo que reina e que, em geral, pode
ser a origem dos demais deuses. O problema do politeísmo seria delimitar o que
se entende como deus ou como algo sobre-humano. Politeístas foram a religião
grega e a romana.
1.2.2. O panteísmo
O panteísmo é uma filosofia
que, por levar a extremos as noções de absoluto e de infinito, próprias do
conceito de Deus, chega a considerá-lo como a única realidade existente e,
portanto, a identificá-lo com o mundo. É clássica a formulação do filósofo
Baruch Spinoza, no século XVII: Deus sive natura (Deus ou natureza). Alguns
filósofos gregos e estóicos foram panteístas, doutrina que também é a base
fundamental do budismo.
1.2.3. O deísmo
Também uma corrente
filosófica, o deísmo reconhece a existência de Deus enquanto constitui um ser
supremo de atributos totalmente indeterminados. Essa doutrina funda-se na
religião natural, que nega a revelação. O que o homem conhece a respeito de
Deus não decorre apenas das deduções da própria razão humana. Se o universo
físico é regulado por leis segundo a vontade de Deus, as relações entre Deus e
o mundo moral e espiritual devem ser similares, reguladas com a mesma precisão
e, portanto, naturais. O período do Iluminismo (séculos XVII-XVIII) proclamou o
culto à deusa razão e a revolução francesa ajudou a organizá-lo.
1.2.4. O monoteísmo
As religiões monoteístas
professam a crença num Deus único, transcendente -- distinto e superior ao
universo -- e pessoal. Um dos grandes problemas do monoteísmo é a explicação da
existência do mal no mundo, o que levou diversas religiões a adotarem um
sistema dualista, o maniqueísmo, fundado nos princípios supremos do bem e do
mal.
As grandes religiões
monoteístas são o judaísmo, o cristianismo -- que professa a existência de um
só Deus, apesar de reconhecer, como mistério, três pessoas divinas -- e o
islamismo.
Elementos característicos
dos sistemas religiosos. Os princípios elementares comuns à maioria das
religiões conhecidas na história podem agrupar-se nos seguintes capítulos:
crenças, ritos, normas de conduta e instituições.
Toda religião pressupõe
algumas crenças básicas, como a sobrevivência depois da morte, mundo
sobrenatural etc., ao menos como fundamento dos ritos que pratica. Essas
crenças podem ser de tipo mitológico -- relatos simbólicos sobre a origem dos
deuses, do mundo ou do próprio povo; ou dogmático -- conceitos transmitidos por
revelação da divindade, que dá origem à religião revelada e que são recolhidos
nas escrituras sagradas em termos simbólicos, mas também conceituais.
Os conceitos fundamentais
organizam-se, de modo geral, em um credo ou profissão de fé; as deduções ou
explicações de tais conceitos constituem a teologia ou ensinamento de cada
religião, que enfoca temas sobre a divindade, suas relações com os homens e os
problemas humanos cruciais -- a morte, a moral, as relações humanas etc. Entre
as crenças destaca-se, em geral, uma visão esperançosa sobre a salvação definitiva
das calamidades presentes, que pode ir desde a mera ausência de sofrimento até
a incógnita do nirvana ou a felicidade plena de um paraíso.
A manifestação das próprias
crenças e anseios mediante ações simbólicas é inerente à expressividade humana.
Da mesma forma, as crenças e sentimentos religiosos têm se manifestado através
dos ritos, ou ações sagradas, praticados nas diferentes religiões. Até no
budismo, contra o ensinamento de Buda, desenvolveram-se desde o começo diversas
classes de rituais. Toda religião que seja mais do que uma filosofia gera uma
série de ritos ao ser vivida pelo povo. Existem ritos culturais em honra à
divindade, ritos funerários, ritos de bênçãos ou de consagração e muitos
outros.
Observa-se em geral, nas
diversas religiões, a existência de ministros ou sacerdotes encarregados de
celebrar os principais rituais e, em especial, o culto à divindade. Os atos
mais importantes desse culto são oferendas e sacrifícios praticados em
conjunto, com invocações e orações. Com freqüência celebram-se os ritos em
lugares e épocas considerados sagrados, especialmente dedicados à divindade, e
observados com escrupulosa exatidão através dos tempos.
O terceiro elemento
característico de toda religião é o estabelecimento, mais ou menos coercitivo,
de normas de conduta do indivíduo ou do grupo no que se refere a Deus, a seus
semelhantes e a si mesmo. O primeiro comportamento exigido é a conversão ou
mudança para um novo modo de vida. Com relação a Deus, destacam-se as atitudes
de veneração, obediência, oração e, em algumas religiões, o amor. Na conduta no
âmbito da esfera humana entra, em maior ou menor medida, um sistema de normas
éticas.
Quase todas as religiões
cristalizam-se em algumas instituições dogmáticas (doutrinárias) e cultuais
(sacerdócio, hierarquia). Muitas delas chegam a institucionalizar a conduta,
com a criação até mesmo de tribunais de justiça e sanções e a organizar
administrativamente as diversas comunidades de crentes e suas propriedades.
Essas instituições dão forma e coesão aos crentes como um grupo social --
religião, povo, igreja, comunidade; a elas somam-se outras instituições
voluntárias de tipo assistencial ou de plena dedicação religiosa, que
correspondem a grupos informais dentro do grupo institucionalizado. As
instituições consideram imprescindível a forma externa, enquanto que a fé
considera o espírito interno como essencial à religião.
1.3. O significado de “Filosofia da religião”
A filosofia, tal como a
religião, como um sistema, começou como
uma defesa das crenças religiosas, através do raciocínio filosófico. Assim,
temos as provas racionais da existência da alma e de Deus, como exemplos desse
tipo de atividade. Porém, uma verdadeira filosofia da religião não é
especialmente defensiva, e nem
especificamente negativa. Antes, é a
consideração de assuntos religiosos mediante a crítica analítica e avaliação feitas pela filosofia.
O propósito disso não é, em primeiro lugar, aceitar ou rejeitar as crenças
religiosas e, sim, compreender e descrever as mesmas de formas mais exatas e
abrangente. “A filosofia da religião é o estudo lógico dos conceitos religiosos
e dos conceitos, argumentos e expressões teológicos: o escrutínio de várias
interpretações da experiência e das
atividades religiosas. O filósofo que
pratica a mesma não precisa dedicar-se a religião que estiver estudando... A
filosofia da religião deve ser destinguida da apologética. Novamente, não é
idêntica à teologia natural, visto que o filósofo da religião também pode
ocupar-se na avaliação de alegadas revelações”.
1.4. Animismo
O deus sol, a divindade
lunar, o trovão, a montanha sagrada, os espíritos da água, do fogo, do vento...
A crença de que fenômenos e forças da natureza são capazes de intervir nos
assuntos humanos constitui o fundamento de todas as idéias religiosas
consideradas animistas.
1.4.1. A teoria animista
Em sentido mais técnico,
conhece-se por esse nome a teoria formulada pelo antropólogo inglês Sir Edward
B. Tylor em sua obra Primitive Culture (1871; A cultura primitiva). O animismo,
segundo essa teoria, é a primeira grande etapa da evolução do pensamento
religioso, que indefectivelmente continua pelo politeísmo até culminar no
monoteísmo. Para Tylor, a origem da noção de alma está nas experiências do
adormecimento, da doença, da morte e, sobretudo, dos sonhos, que levam a
imaginar a existência de um “duplo” insubstancial do corpo. Esse princípio da
vida e do pensamento pode atuar com independência e até sobreviver ao corpo
depois de sua morte. A crença em que a alma perdura explica o culto aos mortos
e aos antepassados.
Mais tarde, por analogia com
os seres humanos, começa-se a considerar dotados de alma os animais e as
plantas. Desde o momento em que, dando um passo além, se alcança a concepção de
espíritos independentes que podem encarnar-se nos mais diversos objetos,
aparece o fetichismo e, com ele, o culto à natureza, isto é, a rios, árvores,
fenômenos atmosféricos etc. Quando se chega a venerar um só deus dos rios,
outro das árvores etc., alcança-se a etapa politeísta, própria dos povos “semicivilizados”,
em que são cultuadas personificações das forças da natureza, das quais dependem
a prosperidade e até a sobrevivência do grupo.
Por fim, a transição para o
monoteísmo pode produzir-se de vários modos; o mais simples deles é atribuir a
supremacia a um dos deuses, diante do qual os outros acabam empalidecendo.
1.4.2. Críticas e vigência
da teoria
Por sua clareza,
sugestibilidade e grande simplicidade evolutiva, a obra de Tylor exerceu grande
influência. Contudo, os estudos posteriores abalaram quase todas as suas teses.
Em primeiro lugar, não se pode afirmar hoje que todas as religiões se tenham
constituído seguindo a pauta que ele propõe. E mais: existem comunidades
arcaicas em que surge a crença num ser supremo sem que tenha havido a fase do
animismo. Também não é certo que o fetichismo esteja sempre ligado ao animismo;
muitas vezes, aparece unido à magia. Por outro lado, existem crenças segundo as
quais os homens possuem não só uma, mas várias almas, fenômeno em que Tylor
nunca reparou. Isso sem mencionar a objeção prévia da inexistência de um
procedimento certo que permita conhecer as primeiras crenças dos homens.
Apesar de tudo, reconhece-se
na teoria de Tylor o grande valor de ter mostrado a conexão entre o animismo e
o culto aos mortos, o xamanismo etc., e sobretudo de ter iniciado uma forma de
abordar as crenças dos povos primitivos, as quais ele viu como uma tentativa de
racionalizar a experiência, e não como manifestações de uma mentalidade
pré-lógica ou como meras representações simbólicas da ordem social.
1.5. Fetichismo
O conceito de fetichismo
ficou inicialmente restrito ao campo da antropologia, mas foi depois utilizado
pela psicologia, principalmente por Freud, e pela sociologia, sobretudo por
Marx.
Fetichismo é a atribuição simbólica,
a pessoas, partes do corpo ou coisas, de propriedades ou características que
emanam de outros objetos ou indivíduos.
1.5.1. Conceito
antropológico
Em antropologia, o conceito
de fetichismo descreve os sistemas de crenças, de índole geralmente animista,
que atribuem a determinados objetos propriedades mágicas ou divinas, ou que
consideram esses mesmos objetos representações ou transposições de um ser
superior, de cujas características seriam possuidores.
Esse fetichismo animista,
muito comum em algumas religiões primitivas da África e de crenças
afro-americanas do Caribe e da América do Sul, representa a aceitação de uma
manifestação primária do sobrenatural no natural. Tal manifestação tem um
caráter de presença, que exige reverência, adoração, gratidão e oferendas, e
também um caráter ativo, de forma que o objeto representante da divindade pode
intervir na natureza para conceder graças ou bens e administrar castigos e
vinganças.
Em cultos como o vodu, que
integrou elementos litúrgicos muito distintos, mas sobretudo católicos, as
crenças fetichistas se transferiram também para esses elementos e dotaram-nos
de poderes mágicos.
1.5.2. Perspectiva
psicopatológica
Por analogia, foi cunhada a
expressão fetichismo erótico para definir a tendência de um indivíduo a sentir
atração sexual por uma parte especial ou particularidade do corpo, ou por algum
objeto a ele associado. Em psicopatologia,
fetichismo refere-se à atribuição de significado erótico a roupas e objetos
que, em si mesmos, não carregam tal significado. No fetichismo erótico, esses
objetos perdem o papel acessório que têm na atividade sexual para se converter
em pontos focais dela.
O fetichismo, considerado
como desvio sexual, também aparece como ingrediente de outros comportamentos
sexuais de caráter mais complexo, como as práticas sadomasoquistas. Nesse tipo
de desvio, a atividade sexual se cerca de rituais em que intervêm objetos que
atuam como estimulantes eróticos, com uma carga de significado específico.
1.5.3. Fetichismo cultural
Fala-se igualmente de um
fetichismo cultural, vinculado não a fenômenos religiosos ou a comportamentos
de caráter psicopatológico, mas a um valor atribuído a objetos, em determinados
meios culturais. Alguns sociólogos consideram que as relações socioeconômicas
nas sociedades avançadas criam uma cultura fetichista, pela qual a posse de
certos objetos confere uma valorização pessoal especial ao indivíduo. A
sociedade de consumo tenderia assim a produzir desvios sociais e a provocar o
abandono de objetivos vitais básicos, pela adoção de estereótipos dos grupos
sociais privilegiados, como automóveis, iates, alimentos exóticos e caros etc.
Marx utiliza o conceito de fetiche no sentido original de “feitiço”, para
referir-se ao duplo aspecto - econômico e ideológico - que a mercadoria assume
na sociedade capitalista.
Outra importante
manifestação do comportamento fetichista são certos movimentos juvenis
espontâneos, em torno de fenômenos como
a música moderna, a moda na indumentária etc., os quais às vezes adquirem um
valor “transcendente” e acabam por desempenhar, além de suas funções imediatas,
o papel de elementos de identificação com o grupo, de afirmação dos próprios
valores ou de rebeldia ante a ordem estabelecida.
1.6. Maniqueísmo
Considerado durante muito
tempo uma heresia cristã, possivelmente por sua influência sobre algumas delas,
o maniqueísmo foi uma religião que, pela coerência da doutrina e a rigidez das
instituições, manteve firme unidade e identidade ao longo de sua história.
Denomina-se maniqueísmo a
doutrina religiosa pregada por Maniqueu -- também chamado Mani ou Manes -- na
Pérsia, no século III da era cristã. Sua principal característica é a concepção
dualista do mundo como fusão de espírito e matéria, que representam
respectivamente o bem e o mal.
1.6.1. Maniqueu e sua
doutrina
Maniqueu nasceu em 14 de
abril do ano 216, no sul da Babilônia, região atualmente situada no Iraque, e
na juventude sentiu-se chamado por um anjo para pregar uma nova religião.
Pregou na Índia e em todo o império persa, sob a proteção do soberano Sassânida
Sapor (Shapur) I. Durante o reinado de Bahram I, porém, foi perseguido pelos
sacerdotes do zoroastrismo e morreu em cativeiro entre os anos 274 e 277, na
cidade de Gundeshapur.
Maniqueu se acreditava o
último de uma longa sucessão de profetas, que começara com Adão e incluía Buda,
Zoroastro e Jesus, e portador de uma mensagem universal destinada a substituir
todas as religiões. Para garantir a unidade de sua doutrina, registrou-a por
escrito e deu-lhe forma canônica. Pretendia fundar uma religião ecumênica e
universal, que integrasse as verdades parciais de todas as revelações
anteriores, especialmente as do zoroastrismo, budismo e cristianismo.
O maniqueísmo é
fundamentalmente um tipo de gnosticismo, filosofia dualista segundo a qual a
salvação depende do conhecimento (gnose) da verdade espiritual. Como todas as
formas de gnosticismo, ensina que a vida terrena é dolorosa e radicalmente
perversa. A iluminação interior, ou gnose, revela que a alma, a qual participa
da natureza de Deus, desceu ao mundo maligno da matéria e deve ser salva pelo
espírito e pela inteligência.
O conhecimento salvador da
verdadeira natureza e do destino da humanidade, de Deus e do universo é
expresso no maniqueísmo por uma mitologia segundo a qual a alma, enredada pela
matéria maligna, se liberta pelo espírito. O mito se desdobra em três estágios:
o passado, quando estavam radicalmente separadas as duas substâncias, que são
espírito e matéria, bem e mal, luz e trevas; um período intermediário (que
corresponde ao presente) no qual as duas substâncias se misturam; e um período
futuro no qual a dualidade original se restabeleceria. Na morte, a alma do
homem que houvesse superado a matéria iria para o paraíso, e a do que
continuasse ligado à matéria pelos pecados da carne seria condenada a renascer
em novos corpos.
1.6.2. Maniqueísmo como
religião
A ética maniqueísta
justifica a gradação hierárquica da comunidade religiosa, uma vez que varia o
grau de compreensão da verdade entre os homens, fato inerente à fase de
interpenetração entre luz e trevas. Distinguiam-se os eleitos, ou perfeitos,
que levavam vida ascética em conformidade com os mais estritos princípios da
doutrina. Os demais fiéis, chamados ouvintes, contribuíam com trabalho e
doações. Por rejeitar tudo o que era material, o maniqueísmo não admitia nenhum
tipo de rito nem símbolos materiais externos. Os elementos essenciais do culto
eram o conhecimento, o jejum, a oração, a confissão, os hinos espirituais e a
esmola.
Por sua própria concepção da
luta entre o bem e o mal e sua vocação universalista, o maniqueísmo dedicou-se
a intensa atividade missionária. Como religião organizada, expandiu-se
rapidamente pelo Império Romano. Do Egito, disseminou-se pelo norte da África,
onde atraiu um jovem pagão que mais tarde, convertido ao cristianismo, seria
doutor da igreja cristã e inimigo ferrenho da doutrina maniqueísta: santo
Agostinho. No início do século IV, já havia chegado a Roma.
Enquanto Maniqueu foi vivo,
o maniqueísmo se expandiu para as províncias ocidentais do império persa. Na
Pérsia, apesar da intensa perseguição, a comunidade maniqueísta se manteve
coesa até a repressão dos muçulmanos, no século X, que levou à transferência da
sede do culto para Samarcanda. Missionários maniqueístas chegaram no fim do
século VII à China, onde foram reconhecidos oficialmente até o século IX.
Depois foram perseguidos, mas persistiram comunidades de adeptos no país até o
século XIV. No Turquestão oriental, o maniqueísmo foi reconhecido como religião
oficial durante o reino Uighur -- séculos VIII e IX -- e perdurou até a invasão
dos mongóis, no século XIII.
1.6.3. Posteridade do
maniqueísmo
Embora não haja dados que
permitam estabelecer uma vinculação histórica direta, o pensamento maniqueísta
inspirou na Europa medieval diversas seitas ou heresias dualistas surgidas no
seio do cristianismo. Entre elas, cabe citar a dos bogomilos, na Bulgária
(século X) e, sobretudo, a dos cátaros ou albigenses, que se propagou no sul da
França no século XII. Este último movimento foi uma das mais poderosas heresias
da Europa, sufocada de modo sangrento no início do século seguinte
1.7. Zoroastrismo
Dois princípios supremos, o
bem e o mal, caracterizavam o zoroastrismo. Substituído pelo islamismo, o
zoroastrismo reduziu-se a grupos de guebros no Irã e de parses na Índia, mas
deixou traços nas principais religiões, como o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo.
Zoroastrismo é um antigo
sistema religioso-filosófico que repousa no postulado básico de uma contradição
dualista, a do bem e do mal, inerente a todos os elementos do universo. Os
pressupostos do sistema foram estabelecidos por Zoroastro, ou Zaratustra, que,
nascido na Pérsia no século VI a.C., que parece ter sido um reformador do
masdeísmo ou mazdeísmo, antiga religião da Média. A doutrina de Zoroastro foi
transmitida oralmente e recolhida nos gathas, os cânticos do Avesta, conjunto
de livros sagrados da religião.
As reformas de Zoroastro não
podem ser entendidas fora de seu contexto social. A sociedade dividia-se em
três classes: a dos chefes e sacerdotes, a dos guerreiros e a dos criadores de
gado. Essa estrutura se refletia na religião, e determinadas deidades (daivas),
estavam associadas a cada uma das classes. Ao que parece os ahuras (senhores),
que incluíam Mitra e Varuna, só tinham relação com a primeira classe. Os
servos, mercadores, pastores e camponeses eram considerados insignificantes
demais para ser mencionados nas crônicas e estelas, embora tivessem seus
próprios deuses.
O zoroastrismo prescreve a
fé em um deus único, Ahura Mazda, o Senhor Sábio, a quem se credita o papel de
criador e guia absoluto do universo. Dessa divindade suprema emana seis
espíritos, os Amesas Spenta (Imortais Sagrados), que auxiliam Ahura Mazda na
realização de seus desígnios: Vohu-Mano (Espírito do Bem), Asa-Vahista (Retidão
Suprema), Khsathra Varya (Governo Ideal), Spenta Armaiti (Piedade Sagrada),
Haurvatat (Perfeição) e Ameretat (Imortalidade). Juntos, Ahura Mazda e esses
entes travam luta permanente contra o princípio do mal, Angra Mainyu (ou
Ahriman), por sua vez acompanhado de entidades demoníacas: o mau pensamento; a
mentira, a rebelião, o mau governo, a doença e a morte.
Como fruto dessa noção, há
no zoroastrismo uma série de exortações e interdições destinadas a dirigir a
conduta dos homens, para reprimir os maus impulsos. Através do combate
cotidiano a Angra Mainyu e sua coorte (que se manifestam, por exemplo, nos
animais de presa, nos ladrões, nas plantas venenosas etc.), o indivíduo
torna-se merecedor das recompensas divinas, embora tenha liberdade para
decidir-se pelo mal, caso em que será punido após a morte. Enquanto religião, o
zoroastrismo reduziu sensivelmente a importância de certos rituais
indo-arianos, repelindo alguns elementos cerimoniais correntes no Irã, como as
bebidas estimulantes e os sacrifícios sangrentos.
Após a adoção oficial do
zoroastrismo pelos aquemênidas, no reinado de Dario I, redigiu-se o Avesta ou
Zend-Avesta, livro sagrado no qual -- na parte denominada gathas, hinos
metrificados em língua arcaica -- encontra-se a sistematização tardia dessa
religião, que teria sido feita pelo próprio Zoroastro. Entretanto, sob os
sucessores de Dario, o zoroastrismo transformou seu caráter, convertendo-se em
mazdeísmo (ou masdeísmo), impregnado de crenças populares e mais complexo dos
pontos de vista escatológico e ritualístico. Apesar dos pontos de contato entre
o zoroastrismo clássico e o mazdeísmo aquemênida (como a purificação ritual
pelo fogo), permanecem sem resposta conclusiva.
1.8. Patrística
A patrística procurou
conciliar as verdades da revelação bíblica com as construções do pensamento
próprias da filosofia grega. A maior parte de suas obras foi escrita em grego e
latim, embora haja também muitos escritos doutrinários em aramaico e outras
línguas orientais.
Patrística é o corpo
doutrinário que se constituiu com a colaboração dos primeiros pais da igreja,
veiculado em toda a literatura cristã produzida entre os séculos II e VIII,
exceto o Novo Testamento.
1.8.1. Histórico
O conteúdo do Evangelho, no
qual se apoiava a fé cristã nos primórdios do cristianismo, era um saber de
salvação, revelado, não sustentado por uma filosofia. Na luta contra o
paganismo greco-romano e contra as heresias surgidas entre os próprios
cristãos, no entanto, os pais da igreja se viram compelidos a recorrer ao
instrumento de seus adversários, ou seja, o pensamento racional, nos moldes da
filosofia grega clássica, e por meio dele procuraram dar consistência lógica à
doutrina cristã.
O cristianismo romano
atribuía importância maior à fé; mas entre os pais da igreja oriental, cujo
centro era a Grécia, o papel desempenhado pela razão filosófica era muito mais
amplo e profundo. Os primeiros escritos patrísticos falavam de martírios, como
A paixão de Perpétua e Felicidade, escrito em Cartago por volta de 202, durante
o período em que sua autora, a nobre Perpétua, aguardava execução por se
recusar a renegar a fé cristã. Nos séculos II e III surgiram muitos relatos
apócrifos que romantizavam a vida de Cristo e os feitos dos apóstolos.
Em meados do século II, os
cristãos passaram a escrever para justificar sua obediência ao Império Romano e
combater as idéias gnósticas, que consideravam heréticas. Os principais autores
desse período foram são Justino mártir, professor cristão condenado à morte em
Roma por volta do ano 165; Taciano, inimigo da filosofia; Atenágoras; e Teófilo
de Antioquia. Entre os gnósticos, destacaram-se Marcião, que rejeitava o
judaísmo e considerava antitéticos o Antigo e o Novo Testamento.
No século III floresceram
Orígenes, que elaborou o primeiro tratado coerente sobre as principais
doutrinas da teologia cristã e escreveu Contra Celsum e Sobre os princípios;
Clemente de Alexandria, que em sua Stromata expôs a tese segundo a qual a
filosofia era boa porque consentida por Deus; e Tertuliano de Cartago. A partir
do Concílio de Nicéia, realizado no ano 325, o cristianismo deixou de ser a
crença de uma minoria perseguida para se transformar em religião oficial do
Império Romano. Nesse período, o principal autor foi Eusébio de Cesaréia.
Dentre os últimos pais gregos destacaram-se, no século IV, Gregório Nazianzeno,
Gregório de Nissa e João Damasceno.
Os maiores nomes da
patrística latina foram santo Ambrósio, são Jerônimo (tradutor da Bíblia para o
latim) e santo Agostinho, este considerado o mais importante filósofo em toda a
patrística. Além de sistematizar as doutrinas fundamentais do cristianismo,
desenvolveu as teses que constituíram a base da filosofia cristã durante muitos
séculos. Os principais temas que abordou foram as relações entre a fé e a
razão, a natureza do conhecimento, o conceito de Deus e da criação do mundo, a
questão do mal e a filosofia da história.
1.9. Epicurismo
Os princípios enunciados por
Epicuro e praticados pela comunidade epicurista resumem-se em evitar a dor e
procurar os prazeres moderados, para alcançar a sabedoria e a felicidade.
Cultivar a amizade, satisfazer as necessidades imediatas, manter-se longe da
vida pública e rejeitar o medo da morte e dos deuses são algumas das fórmulas
práticas recomendadas por Epicuro para atingir a ataraxia, estado que consiste
em conservar o espírito imperturbável diante das vicissitudes da vida.
Epicuro nasceu na ilha grega
de Samos, no ano 341 a.C., e desde muito jovem interessou-se pela filosofia.
Assistiu às lições do filósofo platônico Pânfilo, em Samos, e às de Nausífanes,
discípulo de Demócrito, em Teos. Aos 18 anos viajou para Atenas, onde
provavelmente ouviu os ensinamentos de Xenócrates, sucessor de Platão na
Academia. Após diversas viagens, ensinou em Mitilene e em Lâmpsaco e amadureceu
suas concepções filosóficas. Em 306 a.C. voltou a Atenas e comprou uma
propriedade que se tornou conhecida como Jardim, onde formou uma comunidade em
que conviveu com amigos e discípulos, entre os quais Metrodoro, Polieno e a
hetaira Temista, até o fim de seus dias.
Segundo Diógenes Laércio,
principal fonte de informações sobre Epicuro, o mestre desenvolveu sua
filosofia em mais de 300 volumes, mas esse legado escrito se perdeu. Epicuro
elaborou estudos sobre física, astronomia, meteorologia, psicologia, teologia e
ética, mas do que escreveu só se conhecem três cartas e uma coleção de
sentenças morais e aforismos. A física epicurista inspirou-se na doutrina de
Demócrito e propõe um universo, infinito e vazio, que contém corpos
constituídos de átomos, elementos indivisíveis que se acham em constante
movimento. Contrapõe ao determinismo de Demócrito a tese segundo a qual esses
átomos experimentam em seu movimento um desvio (clinamen) espontâneo, que
explica a maior ou menor densidade da matéria que forma os corpos a partir das
colisões e rejeições entre os átomos. Segundo Epicuro, a alma é uma entidade
física, distribuída por todo o corpo. Quando o indivíduo morre, ela se
desintegra nos átomos que a constituem. A percepção sensorial, por meio da
alma, é a única fonte de conhecimento e, por isso, os epicuristas recomendavam
o estudo da natureza para alcançar a sabedoria.
Para chegar à ataraxia, o
homem deve perder o medo da morte. Como corpo e alma são entidades materiais,
não existem sensações boas ou más depois da morte; assim, o temor da morte não
se justifica. Epicuro aceitava a existência dos deuses, mas acreditava que eles
estavam muito afastados do mundo humano para preocupar-se com este. Logo, o
homem não tem porque temer os deuses, embora possa imitar sua existência serena
e beatífica.
De seus estudos científicos,
Epicuro derivou uma filosofia essencialmente moral. À semelhança de outras
correntes filosóficas da época, como o estoicismo e o ceticismo, suas concepções
vieram ao encontro das necessidades espirituais de seus contemporâneos,
preocupados com a desintegração da polis (cidade) grega. O prazer sensorial
converteu-se na única via de acesso à ataraxia. Esse prazer, porém, não
consiste numa busca ativa da sensualidade e do gozo corporal desenfreado, como
interpretaram erroneamente outras escolas filosóficas e também o cristianismo,
mas baseia-se no afastamento das dores físicas e das perturbações da alma. O
maior prazer, segundo Epicuro, é comer quando se tem fome e beber quando se tem
sede. O “tetrafármaco”, receita do mestre para a vida tranqüila, tem o seguinte
teor: “O bem é fácil de conseguir, o mal é fácil de suportar, a morte não deve
ser temida, os deuses não são temíveis.”
No ano 270 a.C., Epicuro morreu
e tornou-se objeto de culto para os epicuristas, o que contribuiu para aumentar
a coesão da seita e para conservar e propagar a doutrina. O epicurismo foi a
primeira filosofia grega difundida em Roma, não apenas entre os humildes, mas
também entre figuras importantes como Pisão, Cássio, Pompônio Ático e outros. O
epicurismo romano contou com autores como Lucrécio e se manteve vivo até o
princípio do século IV da era cristã, como poderoso rival do cristianismo.
1.10. Agnosticismo
A identificação do agnosticismo
com o ceticismo filosófico, de um lado,
e com o ateísmo religioso, de outro, deu ao adjetivo “agnóstico”, de uso muito
amplo, uma pluralidade de significados que induz à confusão.
O termo “agnosticismo”
apareceu pela primeira vez em 1869 num texto do inglês Thomas H. Huxley,
Collected Essays (Ensaios reunidos). O autor criou-o como antítese ao
“gnóstico” da história da igreja, que sempre se mostrava, ou pretendia
mostrar-se, sabedor de coisas que ele, Huxley, ignorava. E foi como naturalista
que Huxley usou do vocábulo. Com ele, aludia à atitude filosófica que nega a
possibilidade de dar solução a todas as questões que não podem ser tratadas de
uma perspectiva científica, especialmente as de índole metafísica e religiosa.
Com isso, pretendia refutar os ataques da igreja contra o evolucionismo de
Charles Darwin, que também se havia declarado agnóstico.
1.10.1. Bases históricas
A definição de Huxley viria
possibilitar diferentes concepções do agnosticismo. O propriamente filosófico
seria o que limita o conhecimento ao âmbito puramente racional e científico,
negando esse caráter à especulação metafísica. Tais concepções, que podem ser
rastreadas já nos sofistas gregos, tiveram formulação precisa, no século XVIII,
nas teses empiristas do inglês David Hume, que negava a possibilidade de se
estabelecer leis universais válidas a partir dos conteúdos da experiência, e no
idealismo transcendental do alemão Immanuel Kant, que afirmou que o intelecto
humano não podia chegar a conhecer o númeno ou coisa-em-si, isto é, a essência
real da coisa. O positivismo lógico do século XX levou ainda mais longe essas
afirmações, negando não só que seja possível demonstrar as proposições
metafísicas mas também que elas tenham significado.
No âmbito religioso, o
agnosticismo tem sentido mais restrito. O agnóstico não nega nem afirma a
existência de Deus, mas considera que não se pode chegar a uma demonstração
racional dela; essa seria, em essência, a tese de Hume e de Kant, muito embora
este considerasse possível demonstrar a existência de Deus como fundamento da
moralidade. Por outro lado, já na Idade Média a chamada “teologia negativa”
questionava a cognoscibilidade de Deus, se bem que para enfatizar que só era
possível chegar a Ele pela via mística ou pela fé. Essa seria uma das bases da
“douta ignorância” postulada no século XV por Nicolau de Cusa, e sua influência
é visível em filósofos dos séculos XIX e XX, como o dinamarquês SØren
Kierkegaard e o espanhol Miguel de Unamuno, os quais, embora admitam a
necessidade de um absoluto, não aceitam sua personalização.
Agnosticismo, ateísmo e
ceticismo. Como se vê, a rigor não se pode falar de agnosticismo, mas de
agnosticismos e, melhor ainda, de agnósticos, já que existe notável variedade
tanto no processo intelectual pelo qual se chega às teses agnósticas, como na
formulação dessas teses.
Em essência, o agnosticismo
emana de uma fonte profundamente racionalista, isto é, da atitude intelectual
que considera a razão o único meio de conhecimento suficiente, e o único
aplicável, pois só o conhecimento por ela proporcionado satisfaz as exigências
requeridas para a construção de uma ciência rigorosa. E isso tanto no caso de
doutrina que se mostre claramente racionalista -- é o que ocorre em relação a
Kant --, como no caso de filosofias nas quais o racionalismo oculte-se sob a
aparência de positivismo ou materialismo.
Como conseqüência, o
agnosticismo circunscreve o conhecimento humano aos fenômenos materiais, e
rejeita qualquer tipo de saber que se ocupe de seres espirituais, transcendentes
ou não visíveis. Não nega -- nem afirma -- a possível existência destes, e sim
deixa em suspenso o juízo, abstém-se de pronunciar-se sobre sua existência e
realidade e atua de acordo com essa atitude. Nessa ordem de coisas, ainda que
admita a possível existência de um ser supremo, ordenador do universo, sustenta
que, científica e racionalmente, o homem não pode conhecer nada sobre a
existência e a essência de tal ser. É isso que distingue o agnosticismo do
ateísmo, pois este nega radicalmente a existência desse ser supremo.
Por outro lado, o
agnosticismo se distingue também claramente do ceticismo, que, segundo a
formulação clássica do grego Sexto Empírico (século III a.C.), não se limita a
negar a possibilidade do conhecimento metafísico ou religioso, mas também a de
tudo aquilo que vá além da experiência imediata. Assim, o ceticismo, pelo menos
em seu grau extremo, não é compatível com a ciência positiva.
No século XX, “agnosticismo”
tende a ser interpretado como um posicionamento diante das questões religiosas.
Nesse sentido, costuma-se distinguir entre um agnosticismo em sentido estrito e
outro “dogmático”: o primeiro sustentaria que é impossível demonstrar tanto a
existência quanto a inexistência de Deus; o segundo se manifestaria em favor da
primeira, mas negaria que se possa chegar a conhecer alguma coisa a respeito do
modo de ser divino. Esta última via é a habitualmente defendida pelos
pensadores que postulam um caminho místico ou irracional de abordagem do
absoluto.
1.11. Gnosticismo
A progressiva divulgação no
mundo romano, a partir do século I da era cristã, de doutrinas religiosas
orientais -- dentre as quais o cristianismo não foi a primeira, e sim apenas
mais uma -- e o apogeu de uma série de escolas filosóficas helenísticas de perfil
acentuadamente místico, como o neopitagorismo e o neoplatonismo, estabeleceram
o clima espiritual em que brotaram as concepções gnósticas.
A palavra gnose (do grego
gnosis, “conhecimento”) emprega-se, ao se tratar do movimento filosófico e
religioso a que deu nome, para designar o conhecimento adquirido não por
aprendizagem ou observação empírica, mas por revelação divina. À gnose,
privilégio dos iniciados, opõe-se a pistis, ou mera crença. Os eleitos que
recebiam a gnose experimentavam uma iluminação que era regeneração e
divinização, e conheciam simultaneamente sua verdadeira natureza e origem.
Reconheciam-se em Deus, conheciam a Deus e apareciam diante de si mesmos como
emanados de Deus e estranhos ao mundo. Assim, adquiriam a certeza definitiva de
sua salvação para toda a eternidade.
Até a descoberta, no século
XX, de diversas coleções de manuscritos, entre os quais os de Nag Hammadi,
Egito, era comum considerar o gnosticismo como uma forma de heresia cristã
inspirada na filosofia grega. Atualmente, tende-se a falar num conjunto de
escolas que, em virtude de princípios comuns, formam o movimento gnóstico. As
noções compartilhadas pelas diversas escolas gnósticas podem resumir-se em três
grandes temas:
1)a
miséria do homem, prisioneiro de seu corpo, pois o gnóstico considerava a alma
procedente de uma realidade supramundana;
2)a
dualidade cósmica, na qual o mundo visível, mau e tenebroso, teria sido criado
por um demiurgo perverso -- elemento tipicamente neoplatônico -- oposto a outro
Deus, bom mas desconhecido;
3)o
apocalipse gnóstico, em virtude do qual o mundo perverso seria substituído pelo
reino divino. Os pneumáticos (conhecedores puros da gnose) ascenderiam até o
pleroma, reino da luz e da perfeição, e o fogo latente oculto no cosmos se
avivaria e consumiria toda a matéria.
3)
As escolas gnósticas
empregaram diferentes métodos de especulação. A maior parte dos estudiosos
tende a considerar a existência de uma gnose não cristã, que englobaria
movimentos como o hermetismo e o maniqueísmo, e de uma gnose cristã, herética.
Esta última, formulada no século II por Basilides e Valentim, afirmava a
realidade de um Deus transcendente e desconhecido, enquanto identificava o
demiurgo criador do mundo físico com o Iavé bíblico. Os ataques a essa tese por
parte de teólogos cristãos dos séculos II e III, como Hipólito e santo Irineu,
fizeram com que o gnosticismo tenha sido considerado um desvio do cristianismo.
Por fim, alguns autores
opinam que as teses enunciadas por Orígenes de Alexandria (séculos II-III),
segundo as quais o objetivo da encarnação e morte de Jesus teria sido trazer o
conhecimento ao homem enganado por seus sentidos, constituíram na realidade uma
tentativa de assimilar a gnose à ortodoxia cristã.
1.12. Neoplatonismo
Mais que simples retomada das
idéias de Platão -- que sustentava existirem dois mundos: o visível, objeto dos
sentidos, e o das idéias, objeto da inteligência -- e ao contrário do que o
nome pode sugerir, o neoplatonismo foi uma verdadeira refundação da metafísica
clássica.
Última grande corrente
filosófica da Grécia antiga, o neoplatonismo é a doutrina que se definiu no
século III da era cristã e predominou na filosofia pagã do período tardio da
antigüidade, até o ano 529. Na época, três correntes ideológicas disputavam a
primazia: o cristianismo, em ascensão; as religiões politeístas do paganismo; e
as correntes filosóficas gregas e, em particular, o estoicismo.
O grande expoente do
neoplatonismo foi Plotino, que elaborou a teoria da emanação ou panteísmo
neoplatônico, segundo a qual o ser divino e o mundo são, em última análise,
idênticos. Para Plotino, o mundo não foi produzido do nada, mas emanou do
próprio Uno, Divindade e Bem Supremo do qual procedem por emanação todas as
coisas.
Do Uno deriva,
primeiramente, o nous ou espírito, explicação de todas as coisas ao nível ideal
e que eqüivale claramente ao mundo das idéias platônico. Do nous emana a alma,
nome genérico que abrange três níveis distintos e hierarquizados: a alma
suprema, que permanece em estreita união com o nous; a alma do todo, criadora
do universo físico; e as almas particulares, que animam os corpos, os astros e
todos os seres vivos.
O mais inferior grau da
emanação divina é a matéria, ou o mundo perceptível pelos sentidos. Plotino
afirma que, ao chegar a esse nível extremo, a potência do Uno está enfraquecida
a ponto de exaurir-se. A matéria sofre, pois, a privação do Bem Supremo e
pode-se-lhe chamar de mal -- não uma força negativa autônoma que se opõe ao
bem, mas a ausência do bem.
Se der atenção apenas a seu
corpo, o homem -- alma (preexistente) que habita um corpo -- se vincula ao mal
e esquece suas origens. A alma precisa despojar-se da ilusão da matéria, e só o
consegue por meio do êxtase místico, no qual é exaltada e preenchida pelo Uno.
Esse êxtase não é um dom gratuito de Deus, mas fruto do esforço do homem para
unir-se à Divindade.
Amônio Sacas, fundador da
escola de Alexandria (em torno do ano 200), foi o mestre com quem Plotino
estudou por 11 anos (de 232 a 243) e de quem recebeu influência decisiva. Em
244, Plotino mudou-se para Roma e fundou sua própria escola. Após ensinar por
dez anos, escreveu 54 tratados, posteriormente dispostos em seis grupos de nove
por seu discípulo Porfírio, que deu à obra o título de Enéadas.
Outras escolas neoplatônicas
se formaram, como a da Síria, fundada por Jâmblico, pouco depois do ano 300; a
de Pérgamo, fundada por Edésio, discípulo de Jâmblico; a de Atenas, iniciada
por Plutarco entre os séculos IV e V, que teve em Proclo seu representante mais
insigne. Com o célebre edito de 529, Justiniano proibiu o funcionamento das
escolas filosóficas de Atenas. O neoplatonismo persistiu ainda na segunda
escola de Alexandria, que renascera na mesma época da fundação da escola de
Atenas e sobreviveu até princípios do século VII.
1.13. Estoicismo
A necessidade de um guia
moral na época de transição da Grécia clássica para a helênica explica por que
o estoicismo ganhou rapidamente adeptos no mundo antigo e também porque
renasceu todas as vezes em que os valores de uma sociedade entraram em crise
profunda.
O estoicismo foi criado pelo
cipriota Zenão de Cício por volta do ano 300 a.C. O termo tem origem em Stoà
poikilé, espécie de pórtico adornado com quadros de várias cores, onde Zenão se
reunia com seus discípulos. Cleantes e Crisipo, entre os discípulos oriundos da
Anatólia, tiveram papel relevante na escola estóica.
Os estóicos se vangloriavam
da coerência de seu sistema filosófico. Afirmavam que o universo pode ser
reduzido a uma explicação racional e que ele próprio é uma estrutura
racionalmente organizada. A capacidade do homem de pensar, projetar e falar
(logos) está plenamente incorporada ao universo. A natureza cósmica -- ou Deus,
pois os termos são sinônimos para o estoicismo -- e o homem se relacionam um
com o outro, intimamente, como agentes racionais. O homem pode alcançar a
sabedoria se harmonizar sua racionalidade com a natureza. Lógica e filosofia
natural estão, portanto, em íntima e essencial relação. Na história do
estoicismo, apontam-se três períodos básicos: antigo, helenístico-romano e
imperial romano.
1.14. Período antigo
A doutrina ética, como forma
de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade, representou o principal apelo do
estoicismo nesse período. O homem deve viver de acordo com a razão e ser
indiferente a desejos e paixões. A verdadeira felicidade não está no sucesso
material, mas na busca da virtude. Alegrias e infortúnios devem ser igualmente
aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Os mais importantes
filósofos desse período são Zenão, Cleantes e Crisipo.
1.15. Período
helenístico-romano
Com assimilação de elementos
ecléticos e adaptações adequadas, o estoicismo adquiriu uma nova função, como
sistema ético sobre o qual a república romana pretendia assentar-se.
Destacaram-se no período Panécio de Rodes, Posidônio de Apaméia e Cícero. O
homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua atuação
estiver voltada para o bem de seu povo.
1.15.1. Período imperial
romano
O império oferecia a pax
romana, mas, ao mesmo tempo, o fastio e a dissolução dos princípios morais da
sociedade. Musônio Rufo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio criaram os alicerces
teóricos que deveriam dignificar o poder imperial. Alguns preceitos de sua
poderosa doutrina moral foram adotados pela igreja cristã.
1.16. Dualismo
Coube a René Descartes
estabelecer a doutrina dualista no campo da filosofia, e foi Christian von
Wolff quem primeiro utilizou o conceito em sua concepção moderna.
Dualismo é o sistema
filosófico ou doutrina que admite, como explicação primeira do mundo e da vida,
a existência de dois princípios, de duas substâncias ou duas realidades
irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes de síntese final ou de
recíproca subordinação. Na acepção filosófica moderna, refere-se à dualidade de
corpo e espírito como entidades inconfundíveis e irredutíveis, em oposição ao
monismo.
No sentido religioso e
ético, são classificadas como dualistas as religiões ou doutrinas que admitem
uma divindade criadora positiva, princípio de todo bem, e outra, que se lhe
opõe, destruidora, negativa, princípio do mal, sempre em luta com o bem.
Incluem-se aí o masdeísmo, os escritos morais de Plutarco (45-127), o
gnosticismo e o maniqueísmo. Ainda em sentido religioso, e metafísico, é
dualista a filosofia pitagórica, com suas dicotomias entre o perfeito e o
imperfeito, o limitado e o ilimitado, o masculino e o feminino etc., como
elementos de explicação da criação do mundo e de seu movimento.
Na teoria do conhecimento,
são dualistas as doutrinas que distinguem, como irredutíveis, o sujeito e o
objeto (como no kantismo), a consciência e o ser, o eu e o não-eu, como
realidades irredutíveis. Do ponto de vista ético, são dualistas as teorias que
distinguem como inconciliáveis o bem e o mal, a liberdade e a necessidade, o
dever e a inclinação, como acontece com o estoicismo e com a moral kantiana.
A oposição entre dualismo e
monismo não pode ser tomada como marco definitivo e radical nas concepções
filosóficas. Não só há os sistemas ecléticos, e os que admitem mais de dois
princípios, como ainda os que superam a oposição, sem lhe reconhecer a
irredutibilidade radical.
1.17. Monismo
O termo monismo, que
significa literalmente doutrina da unidade, foi cunhado no século XVIII pelo
pensador alemão Christian Wolff e, posteriormente, vulgarizado por Ernst
Haeckel e Wilhelm Ostwald.
Monismo é a teoria
filosófica que toma como base de todo ser uma única substância ou uma única
espécie de substância. Opõe-se ao dualismo e ao pluralismo, pois reduz as
relações a um princípio fundamental, único ou unitário, que tudo explica e
contém.
Encontram-se concepções
monistas na filosofia hindu, no pensamento chinês e na filosofia grega, desde a
pré-socrática até a pós-clássica. A nota comum entre todos os sistemas monistas
é a redução de todas as coisas e princípios à unidade, quer quanto à substância
(monismo ontológico, metafísico ou religioso), quer quanto às leis lógicas ou
físicas (monismo lógico ou gnosiológico), ou quanto às bases do comportamento
moral (monismo ético).
Para o hilozoísmo grego,
toda matéria é viva, ou em si mesma ou porque participa da alma do mundo.
Compartilham essa concepção Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito,
Parmênides, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. O hilozoísmo se manifesta ainda na
física dos estóicos, para quem o pneuma, composto de ar (substância fria) e
fogo (substância quente), é o princípio de todas as coisas.
Depois do Renascimento, o
monismo ontológico ou religioso encontrou um de seus maiores pensadores no
italiano Giordano Bruno, para quem Deus, suprema unidade de todas as coisas, se
confunde com a natureza, de que é vida, força e matéria. Outro monista foi o
holandês Baruch de Spinoza, defensor da idéia segundo a qual espírito e corpo
são atributos da substância divina, sendo Deus e a natureza a mesma coisa. A
monadologia de Leibniz representa um monismo espiritualista, também cabível a
Berkeley e a Rudolf Hermann Lotze. No monismo materialista, em oposição,
incluem-se Thomas Hobbes, John Toland, Dietrich Holbach, Pierre Maupertuis e
Diderot, também hilozoístas. Na passagem para o século XIX, Herder e Goethe
representaram um monismo panteísta, como o de Bruno e Spinoza.
Com Haeckel, o monismo como
sistema filosófico materialista prevaleceu sobre as tendências idealistas no
pensamento contemporâneo. No Brasil, a difusão das idéias de Haeckel se deu por
meio da chamada escola de Recife, com Tobias Barreto e seus discípulos. Dentro
do monismo naturalista, à maneira de Haeckel, inclui-se ainda a doutrina de
Ostwald, para quem a única e última realidade é a energia.
1.18. Escolásticismo
Com a Idade Média e as
invasões bárbaras, a filosofia cristã centrou-se no ensino e na manutenção do
legado clássico nas escolas monacais. A cultura, representada especialmente
pelos livros, refugiou-se nos mosteiros e conventos, motivo pelo qual
costuma-se dizer que a igreja, sobretudo pela ação de seus monges copistas,
salvou a cultura e acabou por absorver os bárbaros da mesma maneira que Roma
absorvera culturalmente a Grécia.
Entende-se em geral por
escolástica o ensino teológico-filosófico da doutrina aristotélico-tomista
ministrado nas escolas de conventos e catedrais e também nas universidades
européias da Idade Média e do Renascimento. Como sistema filosófico e
teológico, a escolástica tentou resolver, a partir do dogma religioso e
mediante um método especulativo, problemas como a relação entre fé e razão,
desejo e pensamento; a oposição entre realismo e nominalismo; e a probabilidade
da existência de Deus.
A noção de filosofia cristã,
embora constantemente empregada, a rigor representa uma contradição em termos,
pois o cristianismo é religião e a filosofia é conhecimento racional.
Historicamente, porém, a escolástica consiste nesse paradoxo de uma filosofia
que é, ao mesmo tempo, racional e religiosa, motivo pelo qual seu problema mais
grave é o das relações entre a razão e a fé. Que liberdade terá a razão, se o
dogma limita a priori seus movimentos? Há, entretanto, um conteúdo filosófico
na obra dos doutores da igreja e dos escolásticos levado em conta na história
da filosofia. Esse conteúdo encontra sua última justificativa na doutrina da
igreja. O pensamento devia demonstrar que a igreja, por seu método próprio, já
havia estabelecido a Verdade.
Surgindo em um mundo
cristão, seus pressupostos eram as crenças básicas em que o mundo então se
fundamentava, radicalmente distintas das que configuravam o mundo antigo,
greco-romano. Os problemas que se apresentavam à filosofia eram suscitados pela
Revelação. A idéia de Deus, uno e trino ao mesmo tempo, da criação do mundo a partir
do nada, da imortalidade pessoal, do homem à imagem e semelhança de Deus, a
noção de história, implícita no relato bíblico, criação, pecado original,
redenção e juízo final são idéias religiosas que provocavam especulação
tipicamente metafísica ou filosófica.
1.19. Filosofia cristã
A filosofia dita cristã
compreende a escolástica mas não se confunde com ela e apresenta três fases: a
patrística; a medieval, que é escolástica; e a escolástica pós-medieval. A
patrística é a filosofia dos primeiros doutores da igreja, que, em luta com o
paganismo e as heresias, se utilizaram da filosofia grega, especialmente do
platonismo e do neoplatonismo, na formulação, elucidação e defesa do dogma. No
mundo moderno romano, até a conversão de Constantino, no século IV, os cristãos
representavam a oposição, com a negação do status quo, do politeísmo
tradicional e da escravidão. Perseguidos e martirizados, eram compelidos, no
trabalho de catequese, a fazer do pensamento uma arma de defesa e propagação da
fé. Embora contenha elementos filosóficos, a patrística é essencialmente
apologética, sendo a primeira reflexão sobre o dogma em um mundo ainda não
cristão.
Na Idade Média, a situação
histórica se alterou radicalmente, pois o mundo no qual pensavam os cristãos
era um mundo cristão, quer dizer, determinado pelo cristianismo na totalidade
de suas manifestações. Havia uma crença vigente, ponto de referência para o
pensamento e critério da verdade. As divergências ocorriam num mesmo contexto
espiritual e não punham em dúvida o fundamento desse mundo, o conteúdo da
revelação, o dogma. As exigências que se apresentavam aos filósofos cristãos já
não eram as mesmas, pois o pressuposto de que partiam não era o paganismo, mas
o próprio cristianismo. Tratava-se então de pensar em um mundo convertido,
configurado em função das crenças e dos valores cristãos. A filosofia pôde,
assim, deixar de ser apologética, para tornar-se docente, magistral ou
escolástica.
1.20. Ensino cristão
Após o longo interregno que
se seguiu à morte de santo Agostinho, no ano 430, o chamado renascimento
carolíngio assinalou o advento de nova época na história do pensamento cristão.
As capitulares do ano 787 recomendavam, em todo o império, a restauração das
antigas escolas e a fundação de novas. As que então se inauguraram podiam ser
monacais, junto aos mosteiros, interiores para religiosos, exteriores para
leigos; as catedrais, junto à sede dos bispados, umas para clérigos e outras
para seculares; e as palatinas, junto às cortes, religiosas, mas abertas a
clérigos e leigos.
O programa de ensino
compreendia as artes chamadas liberais, que se desdobravam em trivium
(gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria,
astronomia e música). A escola, assim como a corporação, era uma comunidade de
trabalho, que funcionava em estreita colaboração com a igreja, o que lhe
assegurava organização estável e continuidade de pensamento. A escolástica
tornou-se, assim, um patrimônio comum, um saber tradicional, que se transmitia
e enriquecia de geração em geração.
O ensino era, em geral,
ministrado na forma de leitura, lectio, e comentário dos textos. Além das
Sagradas Escrituras, entre os livros mais estudados estavam o Organon, de
Aristóteles, traduzido em parte, o Timeu, de Platão, os comentários de Porfírio
e Boécio às obras desses filósofos, as obras de Cícero e de Sêneca; e os textos
dos Pais: Orígenes, Clemente de Alexandria, santo Ambrósio, Pedro Lombardo e,
de modo especial, santo Agostinho, que, até o século XIII, dominou o pensamento
medieval. À simples leitura comentada dos textos, acrescentou-se, com o tempo,
a discussão, questio, e a elaboração de trabalhos e composições pessoais.
Tal modalidade de prática
docente suscitou diversos gêneros literários, característicos da escolástica:
os commentaria (comentários), exegese dos textos; as quaestiones (questões),
que incluíam as quaestiones disputatae (questões discutidas) e as quaestiones
quodlibetales (questões abertas), compilação de debates, registrando os
argumentos apresentados e as soluções encontradas; os trabalhos individuais,
dissertações e monografias, opuscula (opúsculos); e finalmente, as grandes
sínteses, que procuravam sistematizar a totalidade do saber, as summae (sumas),
teológicas e filosóficas, entre as quais devem ser mencionadas, por sua
excepcional importância, a Summa Theologica e a Summa contra gentiles (Suma
contra os pagãos), de santo Tomás de Aquino.
1.21. Evolução histórica
Às etapas da evolução da
filosofia no interior do cristianismo correspondem, historicamente, as fases: de
formação, do século IX ao XII; de apogeu, no século XIII; e decadência, do
século XIV ao XVII, da filosofia escolástica. Da submissão à fé, representada
esta pela igreja, instância heterônoma em face da razão e da posição de
compromisso, a filosofia evoluiu, acompanhando a desintegração do feudalismo e
o advento do mundo burguês, até alcançar, com Descartes e o idealismo alemão,
sua plena autonomia.
A história da escolástica
apresenta-se, assim, como a história da razão humana em determinado momento de
sua evolução, exprimindo inicialmente a alienação, na sujeição ao dogma; em
seguida, a consciência da alienação, na doutrina das duas verdades; e
finalmente a negação da alienação (da negação), na ruptura definitiva entre
razão e fé, e na afirmação de que o real, em sua totalidade, natureza e
história, é racional.
A decadência da escolástica,
a partir do século XIII, exacerbou seus caracteres formais. Desde que, com
Guilherme de Ockham, as verdades da fé são consideradas inacessíveis à razão, a
filosofia, que procura compreender e explicar essas verdades, converteu-se numa
discussão de textos e temas que perderam vigência histórica. O ensino fez
emprego abusivo do silogismo, no verbalismo das fórmulas abstratas. A
complacência no debate e o dogmatismo levaram a que a palavra escolástica
passasse a ter conotação pejorativa.
1.22. Tomismo
O pensamento aristotélico,
que se tornou conhecido no Ocidente no século XIII em traduções do árabe,
serviu de fundamento ao pensamento racionalista e ameaçou a concepção cristã da
realidade, tradicionalmente apoiada no platonismo. A filosofia de santo Tomás
de Aquino compatibilizou o pensamento lógico e racional com a fé cristã. No
Concílio de Trento, a doutrina tomista ocupou lugar de honra e, a partir do
papa Leão XIII, foi tomada como pensamento oficial da Igreja Católica.
Tomismo é a doutrina
filosófico-cristã elaborada no século XIII pelo dominicano Tomás de Aquino,
estudioso dos então polêmicos textos do filósofo grego Aristóteles,
recém-chegados ao Ocidente. Tomás de Aquino dedicou-se ao esclarecimento das
relações entre a verdade revelada e a filosofia, isto é, entre a fé e a razão.
Segundo sua interpretação, tais conceitos não se chocam nem se confundem, mas
são distintos e harmônicos. A teologia é a ciência suprema, fundada na
revelação divina, e a filosofia, sua auxiliar. À filosofia cabe demonstrar a
existência e a natureza de Deus, de acordo com a razão. Só pode haver conflito
entre filosofia e teologia caso a primeira, num uso incorreto da razão, se
proponha explicar o mistério do dogma religioso sem auxílio da fé.
O pensamento de Tomás de
Aquino foi alvo de muita polêmica e violentas críticas dos teólogos de seu
tempo, que o consideravam “excessivamente filosófico”. No entanto, o
racionalismo da doutrina foi justamente o traço que fez com que ela promovesse
a sobrevivência do cristianismo nos tempos em que o pensamento filosófico
passou a ser o saber dominante. As grandes transformações contemporâneas de
Tomás de Aquino -- o surgimento do racionalismo, apoiado no pensamento
aristotélico; o progresso tecnológico e a conseqüente transformação da
estrutura social agrária em urbana; a nova organização comunitária, surgida nas
cidades, vinculada à economia de mercado e às guildas de artesãos; a mudança de
mentalidade, que levava as novas gerações a pretender controlar as forças
naturais com o uso da razão -- devem ser levadas em conta para compreender as
condições que propiciaram o surgimento do tomismo.
1.23. Doutrina tomista
Segundo a doutrina
neoplatônica de santo Agostinho, que dominou o pensamento cristão nos primeiros
12 séculos da era cristã, a alma é superior ao corpo, pois pode transcender a
realidade imediata, percebida pelos sentidos, e alcançar as verdades
universais. Essa capacidade demonstra o caráter extra-humano da alma -- que não
poderia originar-se no homem ou no mundo exterior, ambos imperfeitos -- e
atesta a existência de Deus. O conhecimento é decorrente da iluminação divina e
só pode ser adquirido pela interiorização contemplativa: o mundo sensorial é
mera aparência.
Tomás de Aquino, ao
contrário, não partiu de Deus para explicar o mundo mas, sobre a experiência
sensorial, empregou o conhecimento racional para demonstrar a existência do
Criador. A partir da máxima aristotélica segundo a qual “nada está na
inteligência sem antes ter estado nos sentidos”, formulou as famosas “cinco
vias”, cinco argumentos que provariam a existência de Deus a partir dos efeitos
por ele produzidos, e não da idéia -- no sentido platônico -- de Deus.
Ao atribuir à matéria
conceitos positivos, relacionados ao grau de perfeição inerente às criaturas
divinas, o tomismo alterou o equilíbrio de forças entre corpo e alma, admitindo
ambos como princípios igualmente necessários da natureza humana. O homem
situa-se no universo entre os anjos e os animais. Os anjos seriam substâncias
espirituais e puras, isentas de matéria. Nesse sentido, a alma humana também
seria pura, ou seja, apesar de unida ao corpo, independeria da matéria enquanto
ser.
1.23.1. Provas da existência
de Deus
Os cinco argumentos que para
Tomás de Aquino demonstram a existência de Deus são:
O “primeiro motor imóvel”: o
movimento existe, é evidente aos nossos sentidos. Ora, tudo aquilo que se move
é movido por outra força, ou motor. Não é lógico que haja um motor, outro e
outro, e assim indefinidamente; há de haver uma origem primeira do fenômeno do
movimento, um motor que move sem ser movido, que seria Deus.
A “causa primeira”: toda
causa é efeito de outra, mas é necessário que haja uma primeira, causa não causada,
que seria Deus.
O “ser necessário”: todos os
seres são finitos e contingentes (“são e deixam de ser”). Se tudo fosse assim,
todos os seres deixariam de ser e, em determinado momento, nada existiria. Isto
é absurdo; logo, a existência dos seres contingentes implica o ser necessário,
ou Deus.
O “ser perfeitíssimo”: os
seres finitos realizam todos determinados graus de perfeição, mas nenhum é a
perfeição absoluta; logo, há um ser sumamente perfeito, causa de todas as
perfeições, que seria Deus.
A “inteligência ordenadora”:
todos os seres tendem para uma finalidade, não em virtude do acaso, mas segundo
uma inteligência que os dirige. Logo, há um ser inteligente que ordena a
natureza e a encaminha para seu fim; esse ser inteligente seria Deus.
1.24. Aspectos gerais do
tomismo
A originalidade do
pensamento de Tomás de Aquino evidencia-se em sua concepção de existência,
vista como ato supremo e como a perfeição de estar em Deus e, ao mesmo tempo,
entre as coisas criadas; na atribuição do ato criativo unicamente a Deus; na
negação da existência de matéria nos seres angelicais e, conseqüentemente, na
distinção entre Deus e as criaturas, definidas como uma composição de
existência e essência. Todas as criaturas teriam o amor a Deus como tendência
natural.
Na visão de Tomás de Aquino,
o teólogo aceita a autoridade e a fé como pontos de partida e procede então a
conclusões mediante o uso da razão. O filósofo é aquele que se atém à razão.
Pela primeira vez, a teologia foi expressamente definida dessa maneira, o que
ocasionou um sem-número de oposições, algumas das quais perduram ainda,
sobretudo entre religiosos para os quais a razão é sempre vista como intrusa em
questões de fé.
Embora afirmasse ao mesmo
tempo a crença num Deus criador e a ordem imanente da natureza, Tomás de Aquino
não considerava o mundo como mera sombra do sobrenatural. Para ele, a natureza
criada é regida por leis necessárias -- o que autoriza a construção de uma
ciência racional -- e, descoberta em sua realidade profana, acabaria por revelar
seu valor religioso e levar até Deus por conclusões lógicas. A afirmação de um
valor religioso imanente ao mundo natural era um dos pontos que escandalizava
os agostinianos, para quem a natureza, feita em pedaços pelo pecado, dependia
do poder e da graça divinas para se redimir.
Assim como Aristóteles,
Tomás de Aquino sustentava que conhecer não é lembrar-se, como pretendia
Platão, mas extrair, por meio de um intelecto agente, a forma universal que se
acha contida nos objetos sensíveis e particulares. O conhecimento parte dos
sentidos e chega ao inteligível pela abstração intelectual.
Segundo a concepção tomista
de um processo contínuo de criação, a ordem do mundo manifesta a onipresente
providência divina, da qual as criaturas são eternamente dependentes. Tal
providência age de forma criativa e permite que cada criatura siga sua natureza
intrínseca, o que se expressa no homem, ser racional, em sua forma máxima.
Dependente da providência divina mas livre para seguir sua natureza, o homem,
ao manter-se próximo a Deus, realiza mais plenamente sua liberdade, pois
“afastar algo do estado de perfeição da criatura é afastá-lo da própria
perfeição do poder criador”. A graça sobrenatural eleva e torna perfeitas as
habilidades naturais do ser.
Evolução do tomismo até o
século XIX. O complexo e coerente corpo doutrinário tomista foi criticamente
analisado e desenvolvido durante os séculos subseqüentes. A condenação de
diversas teses tomistas pela Inquisição, em 1277, levou a uma febril produção,
sobretudo pelos dominicanos durante o século XIII, de comentários “corretivos”
à obra de Tomás de Aquino. A adoção oficial da doutrina tomista pela ordem
dominicana, assim como a canonização de seu autor em 1323 e o destaque
conferido à obra pelo Concílio de Trento, encorajaram um retorno aos textos
originais. O francês Jean Capréolus, chamado o “príncipe dos tomistas”,
empreendeu os primeiros estudos sistemáticos da obra de santo Tomás de Aquino,
trabalho que seria continuado, já no início do século~XVI, pelo italiano Tomaso
de Vio, ou cardeal Cajetano.
No Renascimento, predominou
a tendência a dar tratamento em separado a questões filosóficas e teológicas. A
nova abordagem está presente na obra do dominicano português frei João de Santo
Tomás, que publicou um Cursus philosophicus (Curso filosófico) e um Cursus
theologicus (Curso teológico) segundo o ponto de vista tomista. Embora
continuasse a merecer destaque entre os teólogos, o tomismo, assim como o
pensamento cristão em geral, experimentou certo declínio durante o auge do racionalismo
e do empirismo, representados por Descartes, Locke e Wolff.
As revoluções européias de
1848 tiveram influência preponderante, tanto junto à Santa Sé como à Sociedade
de Jesus, para a recuperação de princípios ortodoxos quanto a Deus, o homem e a
sociedade, o que trouxe novo apogeu aos textos de santo Tomás de Aquino. A
partir da encíclica Aeterni patris, publicada em 1879 pelo papa Leão XIII, que
enfatizava a importância da ortodoxia com especial destaque para os textos de
santo Tomás de Aquino, o tomismo foi reconhecido como doutrina oficial da
Igreja Católica.
1.25. Humanismo
Como primeira tentativa
coerente de elaborar uma concepção do mundo cujo centro fosse o próprio homem,
pode-se considerar o humanismo a origem de todo o pensamento moderno.
Conhece-se por humanismo o
movimento intelectual que germinou durante o século XIV, no final da Idade
Média, e alcançou plena maturidade no Renascimento, orientado no sentido de
reviver os modelos artísticos da antigüidade clássica, tidos como exemplos de
afirmação da independência do espírito humano.
Nos últimos séculos da Idade
Média, sobretudo nas cidades da Itália, ocorrera um notável crescimento da
burguesia urbana. Os nobres e burgueses enriquecidos adquiriram condições de
dar à cultura um apoio antes exclusivo da igreja e dos grandes soberanos. A
necessidade de conhecimentos que habilitassem os burgueses a gerir e
multiplicar suas fortunas também os impelia na direção da cultura. Juntaram-se
portanto duas linhas com um mesmo fim: maior valorização da cultura e
necessidade de uma educação mais prática do que a teologia medieval podia
oferecer.
Retornou-se assim à fonte do
saber, a antigüidade greco-romana, despojada dos acréscimos teológicos
medievais, e adaptaram-se seus ensinamentos à nova época. O programa de
estudos, orientado para facilitar conhecimentos profissionais e atitudes
mundanas, compreendia a leitura de autores antigos e o estudo da gramática, da
retórica, da história e da filosofia moral. A partir do século XV deu-se a
esses cursos o nome de studia humanitatis ou “humanidades”, e os que os
ministravam ficaram conhecidos como humanistas. No Renascimento, o humanismo
representou também uma ideologia que, sem deixar de aceitar a existência de
Deus, partilhava muitas das atitudes intelectuais e existenciais do mundo
antigo, integradas com as contínuas descobertas sobre a natureza e as novas
condições de vida geradas pelo auge do comércio e da burguesia mercantil. Os
mestres deram as costas à idealização medieval da pobreza, do celibato e da
solidão, e em seu lugar destacaram a vida familiar e o uso judicioso da
riqueza.
1.25.1. Gênese do humanismo
italiano
Enquanto reflexão sobre o
homem, o humanismo sempre existiu. Como movimento cultural coerente e
programático, ocorreu num lugar e numa época histórica determinados: as
cidades-estado italianas do século XV, de onde logo se estenderia por toda a
Europa. Esse movimento, iniciado já no século XIV por autores como Petrarca e
Boccaccio, defendia a capacidade do homem de pensar por si mesmo, sem entraves
nem tutelas, e admitir diferentes soluções para qualquer problema, entre eles
os filosóficos, ainda quando tivessem caráter “pagão”. Assim, frente ao
pensamento teocêntrico medieval, a religiosidade humanista quis chegar a Deus
por meio do exercício da razão.
Produziu-se, além disso, uma
inversão de valores fundamental, que logo seria denominada “giro copernicano”,
em alusão ao sistema heliocêntrico desenvolvido por Nicolau Copérnico.
Inicialmente era o celeste que dava sentido ao terrestre; para os humanistas,
ao contrário, seria o terrestre que daria sentido -- um sentido novo e
reprovável, na visão da ortodoxia oficial -- ao celeste. Na Terra seria o
homem, destronado do centro do universo junto com seu planeta, que mediria o
celeste; e o faria segundo sua própria proporção. Isso ficou muito patente na
arte renascentista (Leone Battista Alberti, Leonardo da Vinci). O corpo humano
passou a ser a unidade com que se comparavam as coisas naturais, e assim se
tornou certa a máxima do sofista grego Protágoras: “O homem é a medida de todas
as coisas.”
O humanismo atacou
vigorosamente a divisão aristotélica estática entre mundo lunar e mundo
sublunar, que subordinava o homem. Aristóteles, pelo menos na interpretação que
dele fizera a escolástica medieval, foi o grande perdedor na renovação clássica
realizada pelo humanismo, já que surgiram escolas neo-aristotélicas que
tentaram reelaborar seu pensamento. Galileu, uma das grandes figuras do
Renascimento, deu combate sem trégua a Aristóteles por sua ignorância em
matemática e sua incapacidade para compreendê-la. Em oposição a ele
glorificou-se Platão, que em seu sistema idealista dera à matemática um lugar
destacado, e exaltou-se a concepção neoplatônica do universo como um todo
harmônico em que o homem constitui o traço de união entre Deus e o mundo
sensível. Não só renascia a filosofia de Platão, mas toda a física --
Demócrito, Epicuro, Lucrécio -- que os intérpretes de Aristóteles haviam
considerado ultrapassada. A revalorização desses filósofos contribuiu para
evidenciar que a teoria de Aristóteles não constituía a única hipótese da
realidade e que seus livros não eram “a física”, mas uma física entre outras. A
discussão científica pôde prosseguir, não nos limites da obra aristotélica, mas
à margem dela. E nesse sentido, a tarefa dos humanistas revelou-se decisiva.
A ruptura com o mito de um
livro humano depositário privilegiado da “verdade” deu também lugar ao
desenvolvimento das disciplinas que se ocupavam do Homo faber, construtor de
seu mundo e de sua felicidade, que encarava a ética como norma para construir a
si mesmo, a economia como instrumento para administrar seus bens e a política
como a arte de gerir sua cidade-estado. Esse novo enfoque reativou a discussão
sobre as artes e as técnicas. Vivendo entre pintores, arquitetos e engenheiros,
os pensadores humanistas abriram caminho para uma revisão fundamental das
relações entre o plano prático e o teórico.
Chegou-se, em suma, a uma
concepção integradora do saber humano, que espelhava a harmonia do mundo.
Assim, Leonardo da Vinci, que afirmou que “nenhuma pesquisa humana pode
denominar-se ciência verdadeira se não passa pelas demonstrações matemáticas”,
não hesitou em considerar que a pintura era “ciência e filha legítima da
natureza, porque esta natureza a gerara”. A exaltação do homem foi
característica comum a todos os humanistas italianos. Para Marsilio Ficino, o
homem era vicário de Deus, imagem de Deus, nascida para reger o mundo, e podia
pretender todas as coisas. Pico della Mirandola, com expressão dramática, pôs
na boca de Deus a seguinte imprecação: “Tu, que não estás sujeito a nenhum
limite, determinarás por ti mesmo tua própria natureza, segundo tua livre
vontade.”
1.25.2. Traços básicos do
programa humanista
Pode-se sintetizar o programa
humanista em três pontos fundamentais:
1) o
objetivo básico do conhecimento é o homem e o significado da vida, e em função
dele devem-se estabelecer as questões cosmológicas;
2) nenhum
filósofo detém o monopólio da verdade;
3) e
existe uma afinidade entre a cultura clássica pagã e o cristianismo, já que o
ensinamento sobre o homem, a vida e a virtude ministrado pelos autores
clássicos pode ser integrado ao cristianismo.
Nem todos os humanistas, no
entanto, acataram a doutrina cristã. O italiano Giordano Bruno, queimado pela
Inquisição, negou o cristianismo que separava Deus do mundo e refutou toda
espécie de hierarquia ontológica e cosmológica, pois para ele o universo
constituía um único nível de ser. Outro pensador italiano, Pietro Pomponazzi,
não hesitou em refutar a imortalidade da alma individual.
Enquanto na Itália o
humanismo foi antes de tudo artístico e filosófico, no centro e norte da Europa
apresentou um matiz religioso muito acentuado. Seu principal representante, o
holandês Erasmo de Rotterdam, uniu a sua devoção pela antigüidade uma dura
crítica à escolástica e a formulação de uma reforma da espiritualidade cristã.
Destacados humanistas não italianos, além dos citados, foram os franceses
Jacques Lefèvre d'Étaples e François Rabelais e os ingleses Thomas More e
Francis Bacon.
1.25.3. Agonia do humanismo
Com o tempo o humanismo
degenerou num culto puramente lingüístico e formal da antigüidade, voltado para
uma erudição que carecia de vitalidade criadora. Desde meados do século XVI, se
tornara pedante e livresco. As teses do reformador Martinho Lutero, com ênfase
na especificidade do cristão em oposição à cultura pagã, bem como o retorno à
ortodoxia estrita encarnada pelos teólogos contra-reformistas, representaram um
golpe de misericórdia para o humanismo.
As guerras que assolaram a
Europa após a Reforma contribuíram igualmente para quebrantar os ideais
humanistas de harmonia natural e social. Contudo, a noção de racionalidade e a
nova visão do mundo difundidas pelo humanismo sobreviveram nos pensadores
racionalistas e empiristas e formaram a base do pensamento iluminista.
1.26. Racionalismo
O desenvolvimento do método
matemático, considerado como instrumento puramente teórico e dedutivo, que
prescinde de dados empíricos, e sua aplicação às ciências físicas conduziram,
no século XVII, a uma crescente fé na capacidade do intelecto humano para
isolar a essência no real e ao surgimento de uma série de sistemas metafísicos
fundados na convicção de que a razão constitui o instrumento fundamental para a
compreensão do mundo, cuja ordem interna, aliás, teria um caráter racional.
Essa era a idéia central comum ao conjunto de doutrinas conhecidas
tradicionalmente como racionalismo, e cuja primeira manifestação aparece na
obra de René Descartes.
O termo racionalismo pode
aludir a diferentes posições filosóficas. Primeiro, a que sustenta a primazia,
ou o primado da razão, da capacidade de pensar, de raciocinar, em relação ao
sentimento e à vontade. Tal forma ou modalidade de racionalismo seria mais propriamente
chamada intelectualismo, pressupondo uma hirarquia de valores entre as
faculdades psíquicas. Em segundo lugar, racionalismo significa a posição
segundo a qual só a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado do real.
Por fim, o racionalismo ontológico ou metafísico consiste em considerar a razão
como essência do real, tanto natural quanto histórico.
Respectivamente, essas
posições correspondem ao racionalismo psicológico, racionalismo gnoseológico ou
epistemológico e racionalismo metafísico. Em comum, existe a convicção de que a
razão constitui o instrumento fundamental para compreensão do mundo, cuja ordem
interna seria também racional. O sentido filosófico de razão, todavia, não pode
ser fixado apenas a partir da linguagem corrente. O termo grego que a designa
desde o nascimento da filosofia grega, logos, indica, embora não deixe de se
referir à noção de cálculo, o discurso coerente, compreensível e universalmente
válido. Caracteriza, além do discurso, o que ele revela, os princípios daquilo
que “é” verdadeiramente. Em contraposição, os sofistas defenderam um pensamento
“desse mundo”, o da consciência comum.
1.26.1. Racionalismo
psicológico
O intelectualismo sustenta
que as duas faculdades especificamente humanas são a vontade e a inteligência
ou razão. A inteligência é vista como a mais importante sob a alegação de que a
vontade ou a capacidade de querer, de decidir, é faculdade cega, cujas
operações dependem da inteligência que, por definição, é a capacidade de
iluminar e de ver. As filosofias intelectualistas opõem-se às filosofias
voluntaristas e sensualistas.
1.26.2. Racionalismo
epistemológico
Posição filosófica que
afirma a razão como única faculdade de propiciar o conhecimento adequado da
realidade. A razão, por iluminar o real e perceber as conexões e relações que o
constituem, é a capacidade de apreender ou de ver as coisas em suas
articulações ou interdependência em que se encontram umas com as outras. Ao
partir do pressuposto de que o pensamento coincide com o ser, a filosofia ocidental,
desde suas origens, percebe que há concordância entre a estrutura da razão e a
estrutura análoga do real, pois, caso houvesse total desacordo entre a razão e
a realidade, o real seria incognoscível e nada se poderia dizer a respeito.
1.26.3. Racionalismo
metafísico
O racionalismo gnosiológico
ou epistemológico é inseparável do racionalismo ontológico ou metafísico, que
enfoca a questão do ser, pois o ser está implicado no pensamento do ser.
Declarar que o real tem esta ou aquela estrutura implica em admitir, por parte
da razão, enquanto faculdade cognitiva do ser humano, a capacidade de apreender
o real e de revelar a sua estrutura. O conhecimento, ao se distinguir da
produção e da criação de objetos, implica a possibilidade de reproduzir o real no
pensamento, sem alterá-lo ou modificá-lo.
1.26.4. Racionalismo
clássico e tendências posteriores
Dois elementos marcariam o
desenvolvimento da filosofia racionalista clássica no século XVII. De um lado,
a confiança na capacidade do pensamento matemático, símbolo da autonomia da
razão, para interpretar adequadamente o mundo; de outro, a necessidade de
conferir ao conhecimento racional uma fundamentação metafísica que garantisse
sua certeza. Ambas as questões conformaram a idéia basilar do Discours de la
méthode (1637; Discurso sobre o método) de Descartes, texto central do
racionalismo tanto metafísico quanto epistemológico.
Para Descartes, a realidade
física coincide com o pensamento e pode ser traduzida por fórmulas e equações
matemáticas. Descartes estava convicto também de que todo conhecimento procede
de idéias inatas -- postas na mente por Deus -- que correspondem aos
fundamentos racionais da realidade. A razão cartesiana, por julgar-se capaz de
apreender a totalidade do real mediante “longas cadeias de razões”, é a razão
lógico-matemática e não a razão vital e, muito menos, a razão histórica e
dialética.
O racionalismo clássico ou
metafísico, no entanto, cujos paradigmas seriam o citado Descartes, Spinoza e
Leibniz, não se limitava a assinalar a primazia da razão como instrumento do
saber, mas entendia a totalidade do real como estrutura racional criada por
Deus, o qual era concebido como “grande geômetra do mundo”.
Spinoza é o mais radical dos
cartesianos. Ao negar a diferença entre res cogitans -- substância pensante --
e res extensa -- objetos corpóreos -- e afirmar a existência de uma única
substância estabeleceu um sistema metafísico aproximado do panteísmo. Reduziu
as duas substâncias, res cogitans e res extensa, a uma só -- da qual o pensamento
e a extensão seriam atributos.
Leibniz, o último grande
sucessor de Descartes, baseou sua doutrina na “harmonia preestabelecida” da
realidade por obra da vontade divina. Distinguiu as verdades de fato --
contingentes e particulares -- das verdades de razão -- necessárias e
universais --, porém considerou as primeiras redutíveis às segundas. Desse
modo, se conhecêssemos as coisas em seu conceito, como Deus as conhece,
poder-se-ia prever os acontecimentos, uma vez que a estrutura do real é
racional ou inteligível. Assim sendo, o método da ciência não poderia ser o da
indução, mas a dedução.
Sob uma perspectiva
contrária, os empiristas britânicos refutaram a existência das idéias inatas e
postularam que a mente é uma tabula rasa ou página em branco, cujo material
provém da experiência. A oposição tradicional entre racionalismo e empirismo,
no entanto, está longe de ser absoluta, pois filósofos empiristas como John
Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem em que
todo conhecimento deve provir de uma “sensação”, não negaram o papel da razão
como organizadora dos dados dos sentidos. O próprio fato de haver toda esta
controvérsia em torno da problemática suscitada por Descartes revela a
importância crucial das teses racionalistas.
O racionalismo cartesiano e
o empirismo inglês desembocaram no Iluminismo do século XVIII. A razão e a
experiência de que resulta o conhecimento científico do mundo e da sociedade
bem como a possibilidade de transformá-los são instâncias em nome das quais se passou
a criticar todos os valores do mundo medieval.
A nova interpretação dada à
teoria do conhecimento pelo filósofo alemão Immanuel Kant, ao desenvolver seu
idealismo crítico, representou uma tentativa de superar a controvérsia entre as
propostas racionalistas e empiristas extremas.
Entendido como posição
filosófica que sustenta a racionalidade do mundo natural e do mundo humano, o
racionalismo corresponde a uma exigência fundamental da ciência: discursos
lógicos, verificáveis, que pretendem apreender e enunciar a racionalidade ou
inteligibilidade do real. Ao postular a identidade do pensamento e do ser, o
racionalismo sustenta que a razão é a unidade não só do pensamento consigo
mesmo, mas a unidade do mundo e do espírito, o fundamento substancial tanto da
consciência quanto do exterior e da natureza, pressuposto que assegura a
possibilidade do conhecimento e da ação humana coerente. Para além de seus
possíveis elementos dogmáticos, a filosofia racionalista, ao ressaltar o
problema da fundamentação do conhecimento como base da especulação filosófica,
marcou os rumos do pensamento ocidental.
1.27. Empirismo
Na história do pensamento, o
racionalismo fundou-se sobre a crença na capacidade do intelecto humano para
compreender a realidade. Incorreu, todavia, em excessos metafísicos que fizeram
dele um sistema filosófico fechado. Diante disso, surgiria na Inglaterra o
empirismo, segundo o qual nenhuma certeza é possível, nenhuma verdade é
absoluta, já que não existem idéias inatas e o pensamento só existe como fruto
da experiência sensível.
Empirismo é a doutrina que
reconhece a experiência como única fonte válida de conhecimento, em oposição à
crença racionalista, que se baseia, em grande medida, na razão. O empirismo deu
início a uma nova e transcendental etapa na história da filosofia, tornando
possível o surgimento da moderna metodologia científica. Do ponto de vista
psicológico, identifica-se com “sensualismo” ou “sensismo”, pelo menos em seus
representantes mais radicais. Comparado ao positivismo, designa principalmente
o método, enquanto o positivismo designa a doutrina a que esse método conduz.
Em termos estritamente gnosiológicos, o que o caracteriza e define é a
afirmação de que a validade das proposições depende exclusivamente da
experiência sensível. Na perspectiva metafísica, identifica-se o empirismo com
a doutrina que nega qualquer outra espécie de realidade além da que se atinge
pelos sentidos.
1.27.1. Caracterização
Nem sempre é fácil
distinguir empirismo e ceticismo. Considerado o fato de que o empirismo não
participa da dúvida universal, muitos entendem válida sua conceituação como
forma expressiva de dogmatismo. Todavia a dificuldade de caracterizá-lo decorre
do número elevado de suas ramificações. O fenomenismo de David Hume e o
imaterialismo de George Berkeley são duas de suas ramificações mais
significativas, às quais convém ainda acrescentar o próprio positivismo. Apesar
dessas diversificações, alguns autores pretendem caracterizá-lo mediante seis
afirmações básicas, algumas delas essencialmente expressivas de suas formas
mais radicais. São elas:
1)não
há idéias inatas, nem conceitos abstratos;
2)o
conhecimento se reduz a impressões sensíveis e a idéias definidas como cópias
enfraquecidas das impressões sensoriais;
3)as
qualidades sensíveis são subjetivas;
4)as
relações entre as idéias reduzem-se a associações;
5)os
primeiros princípios, e em particular o da causalidade, reduzem-se a
associações de idéias convertidas e generalizadas sob forma de associações
habituais;
6)o
conhecimento é limitado aos fenômenos e toda a metafísica, conceituada em seus
termos convencionais, é impossível.
1.27.2. Histórico
O empirismo revelou-se na
filosofia grega sob a forma sensualista, citando-se como seus representantes
Heráclito, Protágoras e Epicuro. Na Idade Média seu mais significativo adepto
foi Guilherme de Occam; expressou-se então por meio do nominalismo, cuja tese
central é a não-existência de conceitos abstratos e universais, mas apenas de
termos ou nomes cujo sentido seria o de designar indivíduos revelados pela
experiência.
O empirismo moderno tem como
seus principais representantes John Locke, Thomas Hobbes, George Berkeley e
David Hume. Mas não se esgota aí o movimento. Sem dúvida, Jeremy Bentham, John
Stuart Mill (em que o empirismo se converte em associacionismo) e Herbert
Spencer podem ser citados como figuras representativas do fenomenismo nos
domínios da ética, da lógica e da filosofia da natureza.
Esse empirismo enfrentou uma
série de dificuldades, sendo a principal e mais profunda a que Immanuel Kant
reconheceu, ao proceder, em sua Kritik der reinem Vernunft (1781; Crítica da
razão pura), à distinção entre a experiência enquanto passo inicial do
conhecimento e enquanto dado absoluto do conhecimento.
O significado do empirismo
pode ser examinado considerando a validade de suas afirmações centrais. Tais
afirmações são:
1)a
rejeição da tese das idéias inatas;
2)a
negação das idéias abstratas;
3)a
rejeição do princípio da causalidade e, por decorrência e generalização, dos
primeiros princípios da razão. A argumentação contra o inatismo foi esgotada
por Locke. Negadas as idéias inatas enquanto idéias explicitadas, elas não
poderiam deixar de estar presentes nas crianças e nos selvagens. A
possibilidade de sua preexistência, meramente virtualizada ou implícita, desde
logo é prejudicada, por se revelar contraditória com a conceituação da
consciência tal como a formulou Descartes e tal como a admitiu Locke. A
argumentação contra a validade da teoria da abstração é da autoria de Berkeley.
Hume considera-a definitiva e irrespondível.
Segundo Berkeley, não se
poderia conceber isoladamente qualidades que não podem existir em separado,
como cor e superfície. Nenhuma condição existe para se pensar em cor, senão em
termos de extensão ou superfície; a vinculação de uma à outra é essencial. De
resto esse foi um dos caminhos explorados por Edmund Husserl, em função da
técnica das variações imaginárias, para atingir o reino das essências. Ainda
segundo Berkeley, qualquer representação será individual. Não se representa o
homem, mas Pedro ou José. O triângulo conceituado nunca deixará de ser
isósceles ou escaleno.
A crítica ao princípio da
causalidade foi feita por Hume e constitui um dos pontos centrais de sua
contribuição à epistemologia. A causalidade, entendida como poder de
determinação e como relação necessária, é recusada. Nenhuma fundamentação
sensorial se lhe poderia oferecer. Apenas se admitem seqüências de eventos
reforçadas em termos de hábitos. Aceita e ampliada sua validade, a crítica
invalida todos os chamados primeiros princípios. Precisamente assim procederam
Stuart Mill, Spencer e, mais modernamente, L. Rougier, Charles Serrus e todo o
Círculo de Viena.
1.28. Iluminismo
No decorrer do século XVIII,
as idéias do Iluminismo sobre Deus, a razão, a natureza e o homem
cristalizaram-se numa cosmovisão que deitou raízes e acabou por produzir
avanços revolucionários na arte, na filosofia e na política.
Iluminismo foi o movimento
cultural e intelectual europeu que, herdeiro do humanismo do Renascimento e
originado do racionalismo e do empirismo do século XVII, fundava-se no uso e na
exaltação da razão, vista como o atributo pelo qual o homem apreende o universo
e aperfeiçoa sua própria condição. Considerava que os objetivos do homem eram o
conhecimento, a liberdade e a felicidade. O Iluminismo foi chamado pelos
franceses de Siècle des Lumières, ou apenas Lumières, pelos ingleses e
americanos de Enlightenment e pelos alemães de Aufklärung.
1.28.1. Características
gerais
O Iluminismo avaliou com
otimismo o poder e as realizações da razão humana, e a crença na possibilidade
de reorganizar a sociedade segundo princípios racionais. Não ignorou a
história, mas a encarou de modo crítico, sem aceitar a idéia de que a evolução
da humanidade fosse inexoravelmente determinada pelo passado. Esse enfoque
retirou do otimismo dos pensadores iluministas qualquer caráter metafísico. Ao
contrário, a visão iluminista tinha por base a possibilidade, aberta a cada ser
humano, de ter consciência de si mesmo e de seus erros e acertos, e de ser dono
de seu destino: a confiança nos efeitos moralizadores e enobrecedores da
instrução se completava na exortação a todas as pessoas para que pensassem e
julgassem por si próprias, sem orientação alheia. A crítica iluminista
dirigiu-se contra a tradição e a autoridade daqueles que se arrogavam a tarefa
de guiar o pensamento, e contra o dogmatismo que os justificava.
Essa luta contra as verdades
dogmáticas deu-se, na esfera política, com a oposição ao absolutismo
monárquico. É certo que houve alguns casos em que monarcas apoiaram e
estimularam as novas idéias, atitude que ficou conhecida como “despotismo
esclarecido”. Esse apoio não configurava uma aliança, pois era quase sempre
superficial e ditado por conveniências políticas ou estratégicas.
A riqueza e complexidade do
movimento iluminista teve como base alguns pontos gerais: em primeiro lugar, a
influência que os empreendimentos científicos do século XVII e início do século
XVIII tiveram sobre as novas idéias. Na astronomia e na física, por exemplo,
Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton levaram a conceber o universo
como “natureza”, ou seja, como um domínio ou realidade dinâmica, regida por
leis gerais que a razão sempre poderia acabar por descobrir. Em segundo lugar,
e como conseqüência, a substituição da idéia de um Deus pessoal, responsável
pelos acontecimentos humanos e eventos naturais, por um deísmo, que valorizava
a idéia abstrata de Deus como princípio ordenador da natureza, “arquiteto do
mundo” e criador de suas leis, mas que não intervém diretamente nele. Embora a
idéia do deísmo não tenha sido compartilhada por todos os pensadores
iluministas -- alguns mantiveram a crença em um Deus transcendente ao qual a
humanidade concernia diretamente, enquanto outros radicalizaram suas opiniões e
chegaram ao ateísmo --, essa foi a tendência dominante do pensamento da época.
Tudo isso levou à crença no
“progresso histórico” da humanidade, concebido não como produto de um plano
divino, mas como resultado da razão e dos esforços humanos. Formou-se assim
pela primeira vez a idéia de “humanidade” como integração de todos os povos,
acima de circunstanciais diferenças étnicas ou situações temporais ou
espaciais.
Como resultado lógico, a
atividade e tarefa que os pensadores iluministas se atribuíam não ficou
centrada na criação de grandes sistemas especulativos, e sim na difusão da
cultura e na abertura de novas perspectivas para a compreensão da realidade. Os
gêneros literários se diversificaram, surgiram inúmeras publicações, e a
diversidade de temas de estudo e de reflexão firmou-se como um dos traços que
permaneceram na cultura contemporânea.
Para avaliar globalmente o
Iluminismo, deve-se levar em conta que, embora houvesse uma atmosfera cultural
comum em quase toda a Europa, as diferenças nacionais e a existência de
sistemas políticos distintos determinaram condições e pontos de vista diversos.
O Iluminismo francês, por exemplo, foi mais anticlerical e de orientação
política do que o Iluminismo britânico, o qual se desenvolveu em um país onde já
havia se estabelecido uma monarquia liberal; já na Alemanha, o debate
intelectual se concentrou em questões metafísicas e religiosas.
1.28.2. Desenvolvimento e
principais tendências
O Iluminismo produziu as
primeiras teorias modernas seculares sobre a psicologia e a ética. O filósofo
empirista inglês John Locke foi, de certo modo, o primeiro iluminista. Em seu
Essay Concerning Human Understanding (1689; Ensaio acerca do entendimento
humano), Locke rejeitou a escolástica, que baseava a explicação do mundo em
conceitos, e recusou também o apriorismo cartesiano: para Locke, os objetos do
entendimento ou conhecimento não poderiam ser entidades constituídas prévia e
independentemente dele, nem tampouco idéias inatas. Assim, considerou que, na
ocasião do nascimento, a mente humana é como uma página em branco, uma tabula
rasa na qual a experiência vai formando o caráter individual. Essas idéias,
radicalizadas por David Hume, ensejaram uma nova visão da ética e da sociedade.
As ações corretas e a organização social justa dependeriam do exercício da
faculdade da razão.
Na França, a organização
política não tinha a flexibilidade e funcionalidade do sistema inglês, de modo
que a reação contra a rigidez hierárquica e a desigualdade levou quase
forçosamente a ideais revolucionários, que apareceram de modo bem definido em
obras como a do barão de Montesquieu, L'Esprit des lois (1748; O espírito das
leis). Nela, o autor postulava um liberalismo de tipo britânico, assegurado --
e essa foi sua grande contribuição à filosofia política -- pela separação dos
poderes executivo, legislativo e judiciário. Voltaire foi, em grande medida, o
símbolo do “século das luzes” francês; atacou com dureza o absolutismo e a
igreja, exaltou a razão e advogou um deísmo que assumiu algumas vezes formas
quase místicas e irracionais.
Denis Diderot e Jean Le Rond
d'Alembert produziram o grande monumento intelectual do Iluminismo: a
Encyclopédie, obra portentosa que consistia numa série de artigos e ensaios de
vários pensadores e especialistas, que versavam sobre o homem e suas “ciências,
artes e ofícios”. A Encyclopédie, que se estendeu por 35 volumes e teve notável
influência intelectual na França e em outros países, deu grande importância ao
progresso e à ciência.
Jean-Jacques Rousseau foi
uma das grandes figuras das Luzes. Para ele, a moral surge com a sociedade,
pressupõe o princípio da ordem e exige a liberdade. A única sociedade política
aceitável para o homem é a que está fundada no consentimento geral. Rousseau
não preconizou a revolução nem incitou a ela, mas suas idéias influenciaram os
revolucionários franceses. Por sua riqueza e originalidade, são também um marco
inaugural do romantismo e uma das referências do pensamento moderno.
Na Aufklärung, destacou-se
Christian Wolff. Diferente das Lumières, o Iluminismo germânico sofreu
influência da reforma luterana e do empirismo de Locke, e apresentou grande
atração pelas matemáticas. Todas essas tendências se incorporaram a um núcleo
central representado pela problemática metafísica. A estética foi estudada
principalmente por Gotthold Ephraim Lessing. Immanuel Kant é o resumo por
excelência do Iluminismo e iniciou uma nova forma de pensamento.
Em outros lugares da Europa,
as idéias iluministas penetraram menos. Na Itália, Giambattista Vico propôs uma definição e um projeto racionais da
história, na qual distinguia três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos
homens. Na península ibérica, o predomínio da teologia cristã tradicional
tolheu as novas idéias, que encontraram maior difusão nas colônias
hispano-americanas e no Brasil, e contribuíram para a formação do pensamento
social e político dos líderes do movimento de independência.
1.28.3. Significado
histórico
O Iluminismo extinguiu-se,
ao menos em parte, pelos excessos de algumas de suas idéias. A oposição às
idéias religiosas e a usurpação da figura de Deus tornaram-no estéril e sem
atrativos aos olhos de muitos para quem a religião era fonte de consolo,
esperança e sentimento de comunhão. O culto quase ritualístico à razão
abstrata, elevada à categoria de autêntica divindade, levou também a cultos de
tipo esotérico ou obscurantista. E o período do “Terror”, que se seguiu à
revolução francesa foi um golpe para a convicção iluminista de uma sociedade justa e pacífica, fundada em
princípios racionais partilhados por todos os cidadãos.
Os pensadores iluministas
deixaram como legado a definição e desenvolvimento de muitos dos conceitos e
termos empregados ainda hoje no tratamento de temas estéticos, éticos, sociais
e políticos. E o mundo contemporâneo herdou deles a convicção, rica de
esperanças e projetos, de que a história humana é uma crônica de contínuo
progresso.
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